sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Pondá

No dia dos meus anos a minha mãe fazia questão de ser a primeira a acordar-me. Sentia-me feliz por apenas ter nascido às oito horas da manhã e não mais cedo. Entrava à hora exacta e abraçava-me num despertar rabugento. Dizia querer passar aquela hora comigo enquanto andasse por cá. Acho que era o único acontecimento em que pautava pela pontualidade. Todos os outros constituíam um martírio de esperas intermináveis. Numa madrugada em Pondá eu ansiava por ter nascido mais cedo. Por voltar a recebê-la no meu quarto no dia dos meus anos. Passara a noite em claro, atormentado pelos percevejos que entravam na minha boca, ouvidos e narinas sempre que adormecia. Os dias no campo de prisioneiros eram passados num sufoco tórrido, rodeado de arame farpado e desespero. À noite, quando a temperatura prometia arrefecer, eram os mosquitos que se banqueteavam nos meus pulsos, nós dos dedos, tornozelos e pescoço. Todo o meu corpo exposto inchava. Impediam-me de pensar. Mesmo nos momentos de tréguas sentia picadas imaginárias que me faziam esbofetear as pernas e a cara na esperança de me vingar. As latrinas resumiam-se a um buraco aberto na proximidade do campo. Os dejectos aqueciam e ferviam durante o dia empastelando toda a atmosfera. Em Março de 62 eu estava fraco e não conseguia pensar. Sabia que não devia estar ali. Por qualquer razão oculta todos se recusavam a entender-me. Deixei-me dominar pelo desespero. A insanidade apoderou-se de mim. Entendi que não tinha estofo para morrer nem sobreviver naquelas condições. Desenvolvi um ódio surdo por todos. Nas noites que eram longas o meu corpo recusava-se a adormecer. Apenas gritava. Primeiro educadamente, uma tosse, um comentário fora de horas. Depois passei a grunhir gritos de desespero, até que os camaradas acordavam e insultavam-me. Em Março passaram a bater-me até me calar. Deixei de gritar. Na madrugada dos meus anos eu não conseguia dormir. Consolava-me a demência que tornara o tempo imperceptível. Era o meu dia de aniversário. Sabia-o sem ter a consciência do tempo que deixei de contar, mas por ter sentido um beijo terno na face instantes antes de tentar adormecer. Disse-me “até amanhã!” e eu reconheci a minha mãe, porque fazia anos, e ela lembrou-se de mim. Combinou comigo como em todas as manhãs da minha infância e deu-me um beijo para que não esquecesse que daí a pouco seriam oito horas. Mas o tempo tinha deixado de passar e eu prometera-lhe que ia para casa. Na véspera ouvira uma conversa entre dois camaradas que me odiavam por gritar de noite e cheirar a fezes. Combinavam fugir misturados com o lixo da manhã. Supliquei que me levassem. Prometi-lhes abrigo e comida nas melhores casas de Goa. Seria o seu sustento enquanto estivéssemos a monte.
Os bastardos riram-se de mim – És um cadáver demasiado pesado…- Talvez não o tivessem dito, mas pensaram, porque eu não tinha forças para fugir nem para lhes bater. Depois saíram deixando-me na expectativa. Fazia anos, ou pelo menos estava convencido do meu aniversário. Pensei apanhá-los no último momento. Nessa altura seria demasiado tarde para me abandonarem.Dirigi-me para as traseiras da camarata e fiquei à espera da manhã. Os prisioneiros começaram a sair lentamente para o pátio. As latrinas encheram-se. O ar voltou a ficar nauseabundo, o calor voltou a sufocar-me com os raios da manhã. Vi-os introduzirem-se na carroça do lixo e a passarem ocultos a porta de armas. Aí o meu desespero aumentou. Lembrei-me que não podia ir para casa porque estava preso; a minha mãe já não me esperava porque tinha morrido há sete anos. O pior do ser humano manifestou-se numa atitude de revolta que era só minha e a voz explodiu – Gritei e dei o alerta em Português, Hindi, Inglês, Marati e todas as línguas que a Mãe Índia me obrigara a aprender. Eu odiava aquela Mãe porque todos os camaradas me sovavam, espancavam e eu nada fazia para me defender. Tinha-me esquecido da morte da minha mãe. A sua ausência pesava-me como um novo luto. Não tinha forças e não queria morrer. E aqueles porcos que não me quiseram levar e foram denunciados, viram os seus corpos dilacerados pelos bambus dos guardas do campo. Isto fez aumentar o ódio de todos por mim. Os guardas intervieram. Fui separado dos restantes prisioneiros. Até os guardas do campo passaram a nutrir o desprezo que se deve ter pelos delatores.
Acabei por receber o tratamento médico por que tanto esperara e não voltei a ser misturado com os prisioneiros. O médico pessoal do Brigadeiro Sagat Singh deu-me, por cortesia, uma injecção de morfina que me fez adormecer. Nesse instante senti o calor dos lábios da minha mãe na testa e escutei a sua voz: “Feliz Aniversário”.

1 comentário:

  1. Alguma vez tinha que acontecer,olhei longamente a
    parada do destacamento de engenharia e pensei por
    momentos em cada dia passado em Goa,estava-mos em
    1961,dois anos maravilhosos,as ruas que ligavam
    aquele quartel à cidade de Panjim a velha Goa a
    Pondá estavam gravadas no meu coração.O navio que
    nos traria de regresso esperava atracado no porto de Mormugão.31 de Agosto de 1959.

    ResponderEliminar