sábado, 12 de setembro de 2009

New York Times, 5-01-1062

Quando olho não está lá nada. Dirigir-me a qualquer lado na esperança de encontrar. Uma desilusão que embora esperada, provoca uma inevitável sensação de desalento. Como um encontro em que o outro não chegou a aparecer. Ficámos pendurados sem ter combinado nada. Ao contrário do que seria de esperar a desilusão é maior quando nada se espera. Se ao menos tivesse sido um pouco mais precavido no meu desterro. Gostaria de ter a disciplina de não verificar que nada chegou. Quando abro o correio pela manhã sou alimentado por uma esperança ingénua. Encontro o jornal diário, subscrições, contas…Mais nada. Passo os olhos sonolentos pelo jornal, leio as “gordas”.No fim pouco fica. Aprofundo pouco e os temas que me despertavam no passado, pouco me dizem no que sou agora. Os que nada me diziam continuam iguais.
Fui ao correio e depois de retirar as contas e o jornal de sempre, curvei o olhar para o fundo da caixa na certeza que o tacto não me enganava. Por já nada esperar, por ter verificado com a mão, senti, com sempre, um desengano maior ao olhar para a caixa vazia. Um frémito interrompeu-me o olhar dessa manhã. Extracto do artigo do New York Times publicado numa Angola colonial:
“A despeito de a Índia afirmar que o povo goês estava encantado com a sua «libertação», as tropas indianas foram recebidas, por toda a parte em Goa, com escasso entusiasmo.
As Ruas foram decoradas com arcos ou bandeiras para a recepção, e alguns «slogans» Jai Hind (Viva a Índia), pintados nos edifícios oficiais, foram desenhados pelos próprios indianos, e não por goeses entusiasmados. A confraternização entre indianos e goeses não existiu...”

O artigo inflamou a comunidade goesa de Angola. Por mim, ajudou-me a quebrar melancolia . Ao mesmo tempo que se exaltava o espírito anti-colonial vivido em Goa e criado pela metrópole, ali estava eu sufocado e apátrida.Mergulhado numa ditadura colonial. Li e reli. Prendeu o meu interesse, não pelo conteúdo do qual duvidava, mas por sentir que ainda falava comigo. De resto havia um lado racional que me impedia de sonhar. Nesse dia valeu a pena abrir a caixa do correio da minha casa de Luanda. Não me recordo de muitos dias como esse. Esse dia viria a ser tão insignificante como os demais. Teria sido melhor receber uma carta do meu pai a pedir que regressasse. Talvez noutro Mundo uma carta de Jaya. Qualquer coisa que me ressuscitasse. Um apelo de uma terra que aos poucos me sentia esquecer e me esquecia.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Prelúdio do Fim

O teu sorriso fácil. Fácil de mais, talvez. Um embaraço quando te rias da minha sinceridade, dos sentimentos ridículos que inadvertidamente partilhava. Depois havia um exagero das vezes que não tinha piada. As graçolas que corriam mal e não deixavam de soltar o teu sorriso fácil. Em ti só o riso permanecia fácil. O que restava dessa expressão sedutora…da primavera venturosa desses tempos de estudante. Sobrava agora a perplexidade de não ter respostas. Como se o nosso romance vivesse num limbo dourado. Talvez o mal esteja nesta terra. Perdeu-se a glória dos mares, das praças-fortes, das cidades. Ficaram relíquias da prosperidade de outros tempos. Os palácios opulentos, as igrejas, os títulos. Já nada resta dessa Goa dourada. O teu sorriso ainda brilha, mas não é o mesmo. Falta-lhe a essência. Sente-se uma mentira latente pronta a soltar-se. Quando os ricos habitantes de Baçaim se decidiram render foi-lhes permitido abandonar a cidade. Os estandartes desfilaram no orgulho da despedida.A sensação de que nada mais poderia ser feito. Os Maratas não deixaram de mostrar a sua admiração pela coragem daquele punhado de homens. Temo que nos esteja reservada uma saída sem glória. Estamos à espera do fim deste lindo espectáculo que acabou antes de o pano cair. Desconheço a hora desse dia anunciado. Espero que sobreviva alguém com a decência de fechar a última porta. O difícil não é decidir par onde irei, mas quem irá comigo. A minha casa e a minha terra já aceitaram a minha ausência. Restas-me tu.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Hotel Mandovi


Ao fim da tarde, sentado, na lassidão da esplanada deixava-me embalar pelo Madovi. Saboreava o meu fenny com a tranquilidade dos derrotados. Fui assaltado pelo teu porte fino. Reconheci-te. Contrariaste todas as probabilidades de te encontrar. Uma presença estranha numa pátria que sempre te revoltou. Aceitei a tua presença com a naturalidade de um milagre. Fui raptado do meu grupo. Avancei imbuído por uma força de outros tempos .

-Julgava-a em Nova Deli.

Porque saí do meu lugar? Os homens de semblante carregado tendem a refugiar-se no inconsciente. Encontram aí uma justificação fácil para as pequenas patifarias. Depois acrescentam um detalhe casuístico, nalguns casos o destino, aqui e ali as circunstâncias do momento: uma mulher convidativa, um negócio da china, uma festa incipiente ou outra, pelo contrário, de irrecusável dionisismo. A banalidade da minha adolescência assentava, como todas, na recusa das coisas banais. Por essa razão classifiquei-me como um moderado cujos excessos advêm da consciência. Os seus limites, esses sim, eram temperados por um inconsciente. Devo a ele a minha permanência nas regiões raianas do incensurável. Os gregos resolveram chamar a isto equilíbrio. Para minha provocação insistiam em idolatrá-lo. Porque me justifico? Há muito que abandonei este hábito terrível de me desculpar.

-Não esperava vê-lo casado. É feliz?

Porque saíste do teu mundo? Encontrámo-nos com a naturalidade de uma rotina. Os anos foram-te suaves. As rugas apareciam discretamente no teu sorriso. Ficavam-te bem. Estavas mais agressiva. Tornamo-nos amantes como se nada de relevante se tivesse passado na tua ausência.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Anacronismo

Revezar -me na vida. Abandonar este meu posto por instantes. Partir. Ser outro sem a sensação de me corrigir. Antes como se nunca tivesse existido. Depois encontrar-me-ia a mim mesmo com o meu amor ao lado. Será que me reconheceria? Voltar-me-ia a apaixonar? A ventura de um enamoramento repetido sem o saber. Não como aqueles recomeços em Puna na esperança que as coisas voltassem ao que eram. Não voltam porque nunca o foram. Guarda-se o que se acredita ter vivido para sempre. Ter decidido não partir, cumprido o desejo de ser outro na tua Índia imaginária. A Índia de Jaya.
Os espíritos racionais não se podem dar ao luxo de viver atormentados por uma reminiscência trágica. Tenho toda uma vida para construir. Provar ao meu pai quem sou. Por que decidi seguir outro caminho. É tarde. A minha família é Florinda. Os meus filhos. Gostaria de ter alguém com quem desabafar numa caçada, após uma bebida forte, talvez numa saída clandestina com um cúmplice de ocasião. Vivo rodeado de gentios. Sofro todos os dias por não ter saudades da minha terra. Por ter medo de regressar e encontrar tudo o que não esperava ver.
A minha guerra é no outro lado de África. Numa terra de oportunidades para enterrar tudo. Os desabafos são uma magnificência proibida.
Esta noite sonhei em Concani. Já não falava a língua há demasiado tempo ainda que tenha sido sozinho.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

S. Francisco Xavier

A procissão seguia entre cânticos. Já tinha avistado várias vezes o corpo incorrupto do santo dos santos. Era o corpo por demais visitado. Parava a olhar o féretro de prata e desejava que me poupassem daquele sofrimento. Ao corpo faltava um pedaço da coxa, um braço e vários bocados de carne amputados por fiéis fervorosos. Temia a morte como todos, mas pior era ver as minhas entranhas disseminadas pelo mundo. O meu tio falara-me com especial afeição de um pedaço de intestino levado por Francisco Mastrilli para as Filipinas. Um pedaço de S. Francisco Xavier adorado por todos. Tudo me arrepiava. Ao intestino davam maior importância. Eram as primeiras partes a apodrecer. Mas aquelas entranhas desafiavam a razão. Recusavam-se a perecer. Outros relatos causavam-me pior arrepio. As mulheres que tinham arrancado com a própria boca tiras de carne de um corpo morto há dezenas de anos. Pedaços de um santo que lambia as chagas dos leprosos ainda em Itália. Eu estava ali, como todos, Hindus e Cristãos unidos por uma devoção àquele corpo místico. Uma devoção necrófila. Procuravam o êxtase que o santo predilecto havia sentido.

A litania parecia interminável. Afastei-me para um pequeno passeio. O meu tio acompanhou-me pelas ruínas da cidade. Depois de passar o convento de Stª Catarina seguimos pelas ruas de outrora engolidas pela selva. Falei-lhe do meu desprezo pelos Holandeses e de como os Ingleses nos haviam traído. O despovoamento da cidade simbolizava o esplendor de tempos difíceis de imaginar. Esperava que o meu tio se sentisse impressionado com o que tinha aprendido no programa oficial de liceu. Irritou-se. Mandou-me calar. Regressámos em silêncio e quando voltámos a avistar a multidão interrompeu a marcha. Agarrou-me pelo pescoço junto à nuca.Fez-me olhar em frente.

-Aqueles são a verdadeira causa das ruínas que viste. Uma multidão de mestiços. Aqui somos todos descendentes de soldados corruptos cruzados com as piores castas do Concão.

Conheci desde sempre a história da família. Ainda hoje sinto um estranho orgulho de não ter sangue branco. De não sermos descendentes. Por vezes sentia que a minha família se transformava numa desordem difícil de entender. Crenças e revoltas ininteligíveis.
Regressámos em silêncio. Só voltaria àquele túmulo para rezar 33 anos depois. No dia 16 de Dezembro 1961. A cidade voltou a partir para pedir ao santo mais um milagre. O Santo resolveu nada fazer. Mesmo morto continuou a sua saga de milagres. A mostrar a mesma sensatez que quando percorria as ruas da cidade apelando à conversão. Apenas o culpo por ter escrito a D. João III a apelar à instauração da Inquisição em Goa. Tudo o resto lhe é desculpável. Afinal o que poderia ter feito?