quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Mandi

Perscrutar o passado constitui uma das actividades mais nobres de qualquer Estado ou Homem. A excepção aparece quando nos olhamos. Para trás fica uma deambulação pela inconsciência perdida do que deveria ter sido e hoje me envergonho. Revejo-me como o mesmo que se decidiu partir; a vergonha apenas me consola por saber que mudei. A prova é o meu embaraço. Pesa-ma olhar para os meus filhos e pensar no pai que poderiam ter tido, a terra que lhes prometi e tudo o que me resolvi subtrair às suas vidas.
A pior das ilusões é esperar que eles possam cumprir o meu destino. Que regressem a um sítio que nunca foi seu e ocupem o lugar vazio na mesa, junto à varanda, onde me sentava. A mesa é maciça e o meu pai já não se senta à cabeceira. Os vidros eram em Mendi, uma espécie de casca de ostra incrustada em balaústres de madeira. A luz tornava-se suave e discreta ao passar nas conchas translúcidas. As janelas abriam de manhã e ouviam-se os ecos de uma mata quase selvagem. As gralhas exaltavam-me a sair do quarto e preenchiam o início do meu dia. Nunca me acostumei aos outros despertares. Ao ruído de um rádio, o ronco de um automóvel. Talvez seja um pretexto para me levantar tarde. Recusar-me a sair da cama. No princípio tinha a justificação do exemplo da casa. De acordar os filhos e obrigá-los a serem saudáveis. Quando chegou a altura de escolher o nome do primogénito tive de optar. Por um lado gostaria de lhes deixar um baptismo de Goa. Os nomes da família eram de origem portuguesa e havia a questão da integração. As crianças são cruéis e lidam mal com as diferenças. Os nomes hindus seriam imperceptíveis. Talvez para o segundo pudesse optar por um nome mais genuíno. Os filhos foram nascendo e os nomes adequaram-se ao costume. Se tivesse escolhido um nome diferente para o último pareceria adoptado. Faltam-me os motivos para me levantar da cama. Vivo num apartamento esquecido na outrora metrópole. O leite de búfalo que outrora bebia na mesa de madeira foi substituído por um cocktail de medicamentos. O médico diz-me que é para poder ter uma vida normal. Na última consulta pensei em contar-lhe que já estive doente e os médicos nada puderam fazer. Valeu-me a Rosu que deverá ter apelado a Hanuman ou à própria Shiva. Gostaria de lhe falar um pouco da minha vida e das saudades que tenho das janelas, do leite de coco, das gralhas; talvez um dia lhe fale do nome pelo qual gostaria de ter chamado os meus filhos. Mas o homem parece ser demasiado ocupado. Trata-me como uma criança e insiste em explicar-me a razão de o meu corpo se recusar a permanecer por cá. Já tentei dissuadi-lo explicando-lhe a vacuidade do seu esforço. É a saudade que me atormenta. A vontade de me corrigir no passado. Os meus filhos jamais regressarão a um tempo que nunca foi seu. Quando o fizerem será para encerrarem as portas de um passado desconhecido. Talvez encontrem um primo distante que lhe fale bem de mim, por ter escutado do seu pai que já morreu e me conhecia. Talvez não cheguem a encontrar primo algum.

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