sexta-feira, 9 de abril de 2010

Gavetas de Metal


O meu pai tinha o estranho hábito de guardar uma cópia de cada carta enviada. O tempo parecia-lhe chegar para tudo. Depois recebia a resposta das cartas enviadas e colocava-as em gavetas de metal estreitas, segmentadas por fichas verticais. Em cada ficha havia um registo das cartas que aguardavam resposta e dos assuntos por elas tratados. A cada destinatário correspondia uma ficha, à excepção do núcleo familiar onde quase todos tinham direito a uma gaveta. Havia um segundo ficheiro destinado a todos os artigos publicados no jornal, onde aparecia uma entrada com o estranho nome de “Pessoal”.


Depois da sua morte os ficheiros mantiveram-se intocáveis, não por deferência mas por falta de interesse dos que lá moravam. Regressei a Goa passados cinco anos da sua morte. Não fui mais cedo por falta de coragem para regressar a um lugar de onde me ausentara por mais de vinte anos. Os cinco anos de abandono da minha herança caíram bem ao resto da família. Viram em mim um filho que soube guardar o luto e não estava à espera da morte do pai para regressar. Aproveitaram simultaneamente os anos da minha ausência e a incapacidade do meu pai para roubarem tudo o que puderam.



Fiz uma aterragem difícil no aeroporto de Dabolim, onde o trem tocou por três vezes no chão tendo-me feito acreditar que o destino me impedia de regressar. Fiz a viagem até Pangim mergulhado numa indiferença que me assustou. Talvez tenha sido pelo caminho que deixara de reconhecer. Pangim estava mudada, mergulhada num tráfego frenético e inundada de caras que nada me diziam. A maioria dos goeses, tal como eu, tinham abandonado o território. Em contrapartida as ruas transbordavam de karnatakas, keralas e marastras que se instalaram em Goa. Alguns dos nomes das lojas apareciam escritos em hindi e mais surpreendentemente em hurdu. A Avenida Afonso de Albuquerque que atravessava Pangim em direcção à nossa casa, chamava-se agora Mahatma Ghandi Av.


O taxista cobrou-me cinquenta rupias e após os meus protestos fechou a conversa a sorrir: Sir, you are a foreigner, you don’t know the prices! Tentei falar com ele em concani, mas nada resultou. No fundo tinha razão. No meu desterro tinha-me considerado goês, mas agora nada me reconhecia. A família esperava-me no alpendre. As minha irmãs e as filhas da casa. Acompanharam-me ao quarto que era do meu pai e fizeram-me descansar na sua cama.


A Rosu estava velha. Sentou-se na borda da cama, como fazia no meu tempo de criança.



- Passou os últimos dois anos nessa cama. Estava demente e pouco se compreendia do que dizia. Ás vezes, de noite, gritava o seu nome e ninguém conseguia dormir. Também senti saudades, mas nunca tive coragem de berrar o seu nome.



Depois saiu e eu afundei-me na cama a olhar os pregos vazios na parede onde outrora estavam travessas Ming. No dia seguinte, pela manhã, iniciei o meu trabalho, mas fui interrompido por uma série de visitas inesperadas que souberam do meu regresso. Recebi-os com indiferença. Acreditava não ter deixado nenhum amigo. Talvez tenham feito um favor em me expulsar… Quando reencontrei o sossego refugiei-me no escritório que era circundado por janelas e aquecia de tarde. O calor impedia-me de me concentrar na análise dos terrenos que me calharam em herança e que agora estavam ocupados. Os armários de arquivo estavam cobertos de pó e depois de algum esforço para encontrar a chave decidi-me a abri-los. Espantei-me por o meu pai ter mantido uma gaveta com o meu nome. Estávamos de relações cortadas há mais de vinte anos e ainda assim a minha gaveta permanecia ali. Ao abri-la reconheci a primeira e única carta que lhe havia escrito de Angola, na minha primeira comissão. Depois encontrei todas as que tinham chegado de Puna e desfiz-me em lágrimas. A minha vida empoeirada num ficheiro quase vazio. Ao ver as cartas percebi o quanto tinha mudado. Os que amava e a forma como o fazia tornaram-se diferentes de mim. O que escrevia com a minha letra já não era eu. Reparei que algumas das cartas estavam corrigidas a lápis de forma a emendar o meu português. Considera-se infinitamente mais perfeito que eu e talvez tenha sido por isso que me decidi a partir. Voltei a ter raiva num momento em que o senti vivo ao meu lado. Por fim, encontrei duas cartas com o meu nome e em duplicado. Revelava-se arrependido e esperava o meu regresso. Nunca chegaram a ser enviadas.