segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Corona Zephyr

A letra do meu pai era deselegante. As palavras iniciavam-se e terminavam em tamanhos diferentes, como se o fim de cada frase tendesse a extinguir-se. A sua personalidade, que parecia forte, projectava-se numa caligrafia irregular e envergonhada. Redigir qualquer texto, por mais pequeno que fosse, provocava-lhe embaraços. Com o advento das máquinas de escrever as mãos aliviaram-se da vergonha. As letras passaram a ser batidas com convicção e os próprios textos ganharam outra coragem. No início enervava-se por cada erro que implicava repetir a página. Com o tempo deixou de se enervar e passou a trabalhar até altas horas. Acostumei-me a escutar no quarto cada batimento das teclas da sua velha Herme Baby que mandara vir da Suiça. Escrevia num ritmo frenético, como se cada texto que publicava já estivesse há muito “batido” na sua cabeça. As frases eram pautadas por breves silêncios, nos quais me assaltava uma falsa esperança de ter chegado ao fim. Depois recomeçava e as palavras regurgitavam um novo ânimo. O silêncio da noite era de novo interrompido e ninguém dormia, nem tão pouco se lamentava. A inspiração surgia-lhe a altas horas da madrugada e apenas os cães se queixavam. Durante os primeiros tempos atreveram-se a ladrar, mas aprenderam a suportar o barulho através da terapia do pontapé. Os criados da casa, que se levantavam cedo, temiam a mesma sorte. Ninguém esboçava o mais leve protesto. A minha letra, embora não fosse bonita, tinha personalidade. Era uma caligrafia áspera,ligeiramente inclinada, a acompanhar a impaciência da juventude. No dia em que terminei o liceu, por gostar de mim ou talvez por inveja do meu pulso firme, recebi uma máquina de escrever. Era uma Corona Zephyr e tornou-se a minha cara-metade. Aprendi a percorrer as ruas de Pangim, com uma mão no guiador e a outra a segurar religiosamente a máquina amarrada na traseira de uma velha bicicleta. No dia em que parti para Puna, recordo-me da forma como o meu pai se despediu de mim. Abraçou-me de forma inesperada e na eternidade daquele momento fiquei a contemplar a máquina nas suas costas pendurada na minha mão… Corona Zephyr. Não sei o que senti, mas limitei-me a ler aquelas palavras, sem sentido, na caixa da máquina enquanto os seus braços me prendiam. Quando abraçamos alguém há um instante de privacidade no momento em que o nosso rosto desaparece. Depois o comboio apitou. A máquina tornou-se pesada e o meu braço soltou-se. Voltou a debruçar os olhos imperativos no meu rosto e talvez se tenha apercebido que os meus olhos nunca se fecharam para saborear aquele momento. Era o fim de uma intimidade concedida por breves instantes: “Volta com um capital intelectual que providencie o teu próprio sustento. É a tua única garantia para a vida.”
A máquina acompanhou-me ao longo do curso e em todas as viagens de regresso a casa. Só aquele momento morreu para sempre. Nos dias que se seguiram à invasão o meu gabinete foi saqueado. Depois da minha prisão não voltei a encontrar a máquina que tinha o terrível defeito de prender o “O” no “L”. Jaya divertia-se a perguntar quem seria esse ser misterioso que assinava por “lve”.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Ausências

Quando me afastei de casa voltei a sentir a liberdade do descomprometimento. Temia que no regresso entendesses o meu olhar distante. A fraqueza de quem esteve ausente nas nossas alegrias: o aniversário de casamento, primeiro filho, novos aniversários. O trabalho parecia chamar-me nas piores alturas. A culpa perseguia-me até ao abraço da chegada. Ao passar a soleira da porta reconhecia um rosto de ansiedade. O teu cheiro pairava no ar: o cheiro da nossa casa. Impregnava-se porque começava a ser cada vez mais nossa, embora só o teu se notasse Talvez tivesse o meu, das curtas passagens, mas não o conseguia sentir, porque era meu e apenas me reconhecia em ti. O melhor abraço que recebia era o do regresso. Parecia durar uma eternidade. Eras sempre tu que me largavas. A tua estabilidade e coração mantiveram-me vivo. Em cada regresso tornava-se mais evidente porque me fazias tanta falta. Preciso de ti porque te amo. Nas minhas pequenas orações peço a Deus que me chame primeiro e agradeço-lhe o maior dom que colocou na minha vida.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Pondá

No dia dos meus anos a minha mãe fazia questão de ser a primeira a acordar-me. Sentia-me feliz por apenas ter nascido às oito horas da manhã e não mais cedo. Entrava à hora exacta e abraçava-me num despertar rabugento. Dizia querer passar aquela hora comigo enquanto andasse por cá. Acho que era o único acontecimento em que pautava pela pontualidade. Todos os outros constituíam um martírio de esperas intermináveis. Numa madrugada em Pondá eu ansiava por ter nascido mais cedo. Por voltar a recebê-la no meu quarto no dia dos meus anos. Passara a noite em claro, atormentado pelos percevejos que entravam na minha boca, ouvidos e narinas sempre que adormecia. Os dias no campo de prisioneiros eram passados num sufoco tórrido, rodeado de arame farpado e desespero. À noite, quando a temperatura prometia arrefecer, eram os mosquitos que se banqueteavam nos meus pulsos, nós dos dedos, tornozelos e pescoço. Todo o meu corpo exposto inchava. Impediam-me de pensar. Mesmo nos momentos de tréguas sentia picadas imaginárias que me faziam esbofetear as pernas e a cara na esperança de me vingar. As latrinas resumiam-se a um buraco aberto na proximidade do campo. Os dejectos aqueciam e ferviam durante o dia empastelando toda a atmosfera. Em Março de 62 eu estava fraco e não conseguia pensar. Sabia que não devia estar ali. Por qualquer razão oculta todos se recusavam a entender-me. Deixei-me dominar pelo desespero. A insanidade apoderou-se de mim. Entendi que não tinha estofo para morrer nem sobreviver naquelas condições. Desenvolvi um ódio surdo por todos. Nas noites que eram longas o meu corpo recusava-se a adormecer. Apenas gritava. Primeiro educadamente, uma tosse, um comentário fora de horas. Depois passei a grunhir gritos de desespero, até que os camaradas acordavam e insultavam-me. Em Março passaram a bater-me até me calar. Deixei de gritar. Na madrugada dos meus anos eu não conseguia dormir. Consolava-me a demência que tornara o tempo imperceptível. Era o meu dia de aniversário. Sabia-o sem ter a consciência do tempo que deixei de contar, mas por ter sentido um beijo terno na face instantes antes de tentar adormecer. Disse-me “até amanhã!” e eu reconheci a minha mãe, porque fazia anos, e ela lembrou-se de mim. Combinou comigo como em todas as manhãs da minha infância e deu-me um beijo para que não esquecesse que daí a pouco seriam oito horas. Mas o tempo tinha deixado de passar e eu prometera-lhe que ia para casa. Na véspera ouvira uma conversa entre dois camaradas que me odiavam por gritar de noite e cheirar a fezes. Combinavam fugir misturados com o lixo da manhã. Supliquei que me levassem. Prometi-lhes abrigo e comida nas melhores casas de Goa. Seria o seu sustento enquanto estivéssemos a monte.
Os bastardos riram-se de mim – És um cadáver demasiado pesado…- Talvez não o tivessem dito, mas pensaram, porque eu não tinha forças para fugir nem para lhes bater. Depois saíram deixando-me na expectativa. Fazia anos, ou pelo menos estava convencido do meu aniversário. Pensei apanhá-los no último momento. Nessa altura seria demasiado tarde para me abandonarem.Dirigi-me para as traseiras da camarata e fiquei à espera da manhã. Os prisioneiros começaram a sair lentamente para o pátio. As latrinas encheram-se. O ar voltou a ficar nauseabundo, o calor voltou a sufocar-me com os raios da manhã. Vi-os introduzirem-se na carroça do lixo e a passarem ocultos a porta de armas. Aí o meu desespero aumentou. Lembrei-me que não podia ir para casa porque estava preso; a minha mãe já não me esperava porque tinha morrido há sete anos. O pior do ser humano manifestou-se numa atitude de revolta que era só minha e a voz explodiu – Gritei e dei o alerta em Português, Hindi, Inglês, Marati e todas as línguas que a Mãe Índia me obrigara a aprender. Eu odiava aquela Mãe porque todos os camaradas me sovavam, espancavam e eu nada fazia para me defender. Tinha-me esquecido da morte da minha mãe. A sua ausência pesava-me como um novo luto. Não tinha forças e não queria morrer. E aqueles porcos que não me quiseram levar e foram denunciados, viram os seus corpos dilacerados pelos bambus dos guardas do campo. Isto fez aumentar o ódio de todos por mim. Os guardas intervieram. Fui separado dos restantes prisioneiros. Até os guardas do campo passaram a nutrir o desprezo que se deve ter pelos delatores.
Acabei por receber o tratamento médico por que tanto esperara e não voltei a ser misturado com os prisioneiros. O médico pessoal do Brigadeiro Sagat Singh deu-me, por cortesia, uma injecção de morfina que me fez adormecer. Nesse instante senti o calor dos lábios da minha mãe na testa e escutei a sua voz: “Feliz Aniversário”.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Mandi

Perscrutar o passado constitui uma das actividades mais nobres de qualquer Estado ou Homem. A excepção aparece quando nos olhamos. Para trás fica uma deambulação pela inconsciência perdida do que deveria ter sido e hoje me envergonho. Revejo-me como o mesmo que se decidiu partir; a vergonha apenas me consola por saber que mudei. A prova é o meu embaraço. Pesa-ma olhar para os meus filhos e pensar no pai que poderiam ter tido, a terra que lhes prometi e tudo o que me resolvi subtrair às suas vidas.
A pior das ilusões é esperar que eles possam cumprir o meu destino. Que regressem a um sítio que nunca foi seu e ocupem o lugar vazio na mesa, junto à varanda, onde me sentava. A mesa é maciça e o meu pai já não se senta à cabeceira. Os vidros eram em Mendi, uma espécie de casca de ostra incrustada em balaústres de madeira. A luz tornava-se suave e discreta ao passar nas conchas translúcidas. As janelas abriam de manhã e ouviam-se os ecos de uma mata quase selvagem. As gralhas exaltavam-me a sair do quarto e preenchiam o início do meu dia. Nunca me acostumei aos outros despertares. Ao ruído de um rádio, o ronco de um automóvel. Talvez seja um pretexto para me levantar tarde. Recusar-me a sair da cama. No princípio tinha a justificação do exemplo da casa. De acordar os filhos e obrigá-los a serem saudáveis. Quando chegou a altura de escolher o nome do primogénito tive de optar. Por um lado gostaria de lhes deixar um baptismo de Goa. Os nomes da família eram de origem portuguesa e havia a questão da integração. As crianças são cruéis e lidam mal com as diferenças. Os nomes hindus seriam imperceptíveis. Talvez para o segundo pudesse optar por um nome mais genuíno. Os filhos foram nascendo e os nomes adequaram-se ao costume. Se tivesse escolhido um nome diferente para o último pareceria adoptado. Faltam-me os motivos para me levantar da cama. Vivo num apartamento esquecido na outrora metrópole. O leite de búfalo que outrora bebia na mesa de madeira foi substituído por um cocktail de medicamentos. O médico diz-me que é para poder ter uma vida normal. Na última consulta pensei em contar-lhe que já estive doente e os médicos nada puderam fazer. Valeu-me a Rosu que deverá ter apelado a Hanuman ou à própria Shiva. Gostaria de lhe falar um pouco da minha vida e das saudades que tenho das janelas, do leite de coco, das gralhas; talvez um dia lhe fale do nome pelo qual gostaria de ter chamado os meus filhos. Mas o homem parece ser demasiado ocupado. Trata-me como uma criança e insiste em explicar-me a razão de o meu corpo se recusar a permanecer por cá. Já tentei dissuadi-lo explicando-lhe a vacuidade do seu esforço. É a saudade que me atormenta. A vontade de me corrigir no passado. Os meus filhos jamais regressarão a um tempo que nunca foi seu. Quando o fizerem será para encerrarem as portas de um passado desconhecido. Talvez encontrem um primo distante que lhe fale bem de mim, por ter escutado do seu pai que já morreu e me conhecia. Talvez não cheguem a encontrar primo algum.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Morada Perdida

Talvez a vida não chegue para o tempo que quero para ti. Foram muitas as cartas em que me imaginei a escrever-te, sem nunca o ter feito. Por não ter a tua morada, a tua cumplicidade… O que realmente me aborrecia, não era não saber de ti. Era não ter um destinatário. Uma espécie de musa que me fizesse regressar ao que aspirava ser. A minha Dinamene…No princípio tudo parecia fácil, a minha mulher, uma casa, os filhos e um país para descobrir. Mas as saudades enganam. Quando pensava que te tinha esquecido, tu regressavas sem aviso. Como se tivesses acabado de te ausentar. Ficava ansioso. Esperava que entrasses a qualquer momento na minha casa de Luanda. Ver-te regressar à minha vida, como o fizeste em Goa, sem te anunciares, a espantares-me com a tua beleza naquele hotel junto ao rio.
A possibilidade de te voltar a encontrar é nula. A Índia é demasiado grande para uma segunda coincidência. Há milhares de pessoas e nós não temos vontade. Em miúdo escutava histórias de faquires. Ouvia que quando pensavam com muita força, a sua cama de pregos levitava e voavam para junto de quem queriam. Quando cresci, desiludi-me. Pensar num reencontro é tão absurdo como esperar que me reconhecesses. Não me refiro ás feições, que estão velhas e me aborrecem. Falo do meu espírito que deixou de te desejar. Pelo menos é nisso que trabalho todos os dias para me convencer. Ainda assim, gostava de ser mais novo. Não por viver mais, apenas um desejo estúpido de emendar o passado. Consolo-me com este vício terrível de me imaginar a escrever-te. A ver-te ler as palavras que já não sinto. Tento afastar estes pensamentos que me parasitam o bem-estar. Outras vezes tento recordar-me do teu corpo e a memória atraiçoa-me. Faltam-me as expressões do teu rosto. Se te reencontrar vais estar velha e gorda. Nesse dia vou compreender que não foi para ti que sonhei escrever. Um tormento que não chega nem me abandona.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Gavetas de Metal


O meu pai tinha o estranho hábito de guardar uma cópia de cada carta enviada. O tempo parecia-lhe chegar para tudo. Depois recebia a resposta das cartas enviadas e colocava-as em gavetas de metal estreitas, segmentadas por fichas verticais. Em cada ficha havia um registo das cartas que aguardavam resposta e dos assuntos por elas tratados. A cada destinatário correspondia uma ficha, à excepção do núcleo familiar onde quase todos tinham direito a uma gaveta. Havia um segundo ficheiro destinado a todos os artigos publicados no jornal, onde aparecia uma entrada com o estranho nome de “Pessoal”.


Depois da sua morte os ficheiros mantiveram-se intocáveis, não por deferência mas por falta de interesse dos que lá moravam. Regressei a Goa passados cinco anos da sua morte. Não fui mais cedo por falta de coragem para regressar a um lugar de onde me ausentara por mais de vinte anos. Os cinco anos de abandono da minha herança caíram bem ao resto da família. Viram em mim um filho que soube guardar o luto e não estava à espera da morte do pai para regressar. Aproveitaram simultaneamente os anos da minha ausência e a incapacidade do meu pai para roubarem tudo o que puderam.



Fiz uma aterragem difícil no aeroporto de Dabolim, onde o trem tocou por três vezes no chão tendo-me feito acreditar que o destino me impedia de regressar. Fiz a viagem até Pangim mergulhado numa indiferença que me assustou. Talvez tenha sido pelo caminho que deixara de reconhecer. Pangim estava mudada, mergulhada num tráfego frenético e inundada de caras que nada me diziam. A maioria dos goeses, tal como eu, tinham abandonado o território. Em contrapartida as ruas transbordavam de karnatakas, keralas e marastras que se instalaram em Goa. Alguns dos nomes das lojas apareciam escritos em hindi e mais surpreendentemente em hurdu. A Avenida Afonso de Albuquerque que atravessava Pangim em direcção à nossa casa, chamava-se agora Mahatma Ghandi Av.


O taxista cobrou-me cinquenta rupias e após os meus protestos fechou a conversa a sorrir: Sir, you are a foreigner, you don’t know the prices! Tentei falar com ele em concani, mas nada resultou. No fundo tinha razão. No meu desterro tinha-me considerado goês, mas agora nada me reconhecia. A família esperava-me no alpendre. As minha irmãs e as filhas da casa. Acompanharam-me ao quarto que era do meu pai e fizeram-me descansar na sua cama.


A Rosu estava velha. Sentou-se na borda da cama, como fazia no meu tempo de criança.



- Passou os últimos dois anos nessa cama. Estava demente e pouco se compreendia do que dizia. Ás vezes, de noite, gritava o seu nome e ninguém conseguia dormir. Também senti saudades, mas nunca tive coragem de berrar o seu nome.



Depois saiu e eu afundei-me na cama a olhar os pregos vazios na parede onde outrora estavam travessas Ming. No dia seguinte, pela manhã, iniciei o meu trabalho, mas fui interrompido por uma série de visitas inesperadas que souberam do meu regresso. Recebi-os com indiferença. Acreditava não ter deixado nenhum amigo. Talvez tenham feito um favor em me expulsar… Quando reencontrei o sossego refugiei-me no escritório que era circundado por janelas e aquecia de tarde. O calor impedia-me de me concentrar na análise dos terrenos que me calharam em herança e que agora estavam ocupados. Os armários de arquivo estavam cobertos de pó e depois de algum esforço para encontrar a chave decidi-me a abri-los. Espantei-me por o meu pai ter mantido uma gaveta com o meu nome. Estávamos de relações cortadas há mais de vinte anos e ainda assim a minha gaveta permanecia ali. Ao abri-la reconheci a primeira e única carta que lhe havia escrito de Angola, na minha primeira comissão. Depois encontrei todas as que tinham chegado de Puna e desfiz-me em lágrimas. A minha vida empoeirada num ficheiro quase vazio. Ao ver as cartas percebi o quanto tinha mudado. Os que amava e a forma como o fazia tornaram-se diferentes de mim. O que escrevia com a minha letra já não era eu. Reparei que algumas das cartas estavam corrigidas a lápis de forma a emendar o meu português. Considera-se infinitamente mais perfeito que eu e talvez tenha sido por isso que me decidi a partir. Voltei a ter raiva num momento em que o senti vivo ao meu lado. Por fim, encontrei duas cartas com o meu nome e em duplicado. Revelava-se arrependido e esperava o meu regresso. Nunca chegaram a ser enviadas.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Jai Hind

Esforcei-me por aprender uma língua estranha. Fui rápido na forma como abracei a tua língua. A língua metafórica, claro. A real demorou mais tempo. Acariciou-me numa conversa igual ás outras. Talvez tenha sido um pretexto para me calares. Era quente como a língua que falavas. Talvez a conversa tenha sido um pretexto para um beijo apetecido. O hindi embalava-me. Era um dialecto diferente. Riamos quando imaginávamos as poltronas inglesas no seu leito:

-Oh Sweetheart… E o Ohhh prolongava-se num acento de Oxford que nos fazia rir em hindi. A tua língua tinha força, mas conseguia ser bonita. Mesmo quando marchávamos numa rua improvável e pobre, sentia a evocação de uma sentido poético. Era bela demais para ser gritada em slogans, ainda que ao teu lado. Via os teus olhos de ódio contra todos os que duvidavam da tua Índia.

-Jai Hind

E eu também gritava contigo nas ruas de Puna. Aproveitei a chegada da polícia para te abraçar. Como se precisasses da protecção de um meio adolescente…Mas eu era alto e a tua face colava-se-me ao peito. Nesse dia os longos bambus da polícia resolveram ignorar-nos -Jai Hindi - gritava ainda mais alto, num acento estranho à multidão. Contava provocá-los pelo pretexto de te proteger.

Nesse tempo desconhecia a fúria dos bambus. A forma como viriam a castigar o meu copo. Não era nem bravo nem tíbio, era um ignorante que gostava de gritar ao teu lado. Prezava o teu rosto no meu peito. Gostava da tua língua e de a sentir como nossa. Mesmo quando gritávamos o que nunca acreditei.

sábado, 12 de setembro de 2009

New York Times, 5-01-1062

Quando olho não está lá nada. Dirigir-me a qualquer lado na esperança de encontrar. Uma desilusão que embora esperada, provoca uma inevitável sensação de desalento. Como um encontro em que o outro não chegou a aparecer. Ficámos pendurados sem ter combinado nada. Ao contrário do que seria de esperar a desilusão é maior quando nada se espera. Se ao menos tivesse sido um pouco mais precavido no meu desterro. Gostaria de ter a disciplina de não verificar que nada chegou. Quando abro o correio pela manhã sou alimentado por uma esperança ingénua. Encontro o jornal diário, subscrições, contas…Mais nada. Passo os olhos sonolentos pelo jornal, leio as “gordas”.No fim pouco fica. Aprofundo pouco e os temas que me despertavam no passado, pouco me dizem no que sou agora. Os que nada me diziam continuam iguais.
Fui ao correio e depois de retirar as contas e o jornal de sempre, curvei o olhar para o fundo da caixa na certeza que o tacto não me enganava. Por já nada esperar, por ter verificado com a mão, senti, com sempre, um desengano maior ao olhar para a caixa vazia. Um frémito interrompeu-me o olhar dessa manhã. Extracto do artigo do New York Times publicado numa Angola colonial:
“A despeito de a Índia afirmar que o povo goês estava encantado com a sua «libertação», as tropas indianas foram recebidas, por toda a parte em Goa, com escasso entusiasmo.
As Ruas foram decoradas com arcos ou bandeiras para a recepção, e alguns «slogans» Jai Hind (Viva a Índia), pintados nos edifícios oficiais, foram desenhados pelos próprios indianos, e não por goeses entusiasmados. A confraternização entre indianos e goeses não existiu...”

O artigo inflamou a comunidade goesa de Angola. Por mim, ajudou-me a quebrar melancolia . Ao mesmo tempo que se exaltava o espírito anti-colonial vivido em Goa e criado pela metrópole, ali estava eu sufocado e apátrida.Mergulhado numa ditadura colonial. Li e reli. Prendeu o meu interesse, não pelo conteúdo do qual duvidava, mas por sentir que ainda falava comigo. De resto havia um lado racional que me impedia de sonhar. Nesse dia valeu a pena abrir a caixa do correio da minha casa de Luanda. Não me recordo de muitos dias como esse. Esse dia viria a ser tão insignificante como os demais. Teria sido melhor receber uma carta do meu pai a pedir que regressasse. Talvez noutro Mundo uma carta de Jaya. Qualquer coisa que me ressuscitasse. Um apelo de uma terra que aos poucos me sentia esquecer e me esquecia.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Prelúdio do Fim

O teu sorriso fácil. Fácil de mais, talvez. Um embaraço quando te rias da minha sinceridade, dos sentimentos ridículos que inadvertidamente partilhava. Depois havia um exagero das vezes que não tinha piada. As graçolas que corriam mal e não deixavam de soltar o teu sorriso fácil. Em ti só o riso permanecia fácil. O que restava dessa expressão sedutora…da primavera venturosa desses tempos de estudante. Sobrava agora a perplexidade de não ter respostas. Como se o nosso romance vivesse num limbo dourado. Talvez o mal esteja nesta terra. Perdeu-se a glória dos mares, das praças-fortes, das cidades. Ficaram relíquias da prosperidade de outros tempos. Os palácios opulentos, as igrejas, os títulos. Já nada resta dessa Goa dourada. O teu sorriso ainda brilha, mas não é o mesmo. Falta-lhe a essência. Sente-se uma mentira latente pronta a soltar-se. Quando os ricos habitantes de Baçaim se decidiram render foi-lhes permitido abandonar a cidade. Os estandartes desfilaram no orgulho da despedida.A sensação de que nada mais poderia ser feito. Os Maratas não deixaram de mostrar a sua admiração pela coragem daquele punhado de homens. Temo que nos esteja reservada uma saída sem glória. Estamos à espera do fim deste lindo espectáculo que acabou antes de o pano cair. Desconheço a hora desse dia anunciado. Espero que sobreviva alguém com a decência de fechar a última porta. O difícil não é decidir par onde irei, mas quem irá comigo. A minha casa e a minha terra já aceitaram a minha ausência. Restas-me tu.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Hotel Mandovi


Ao fim da tarde, sentado, na lassidão da esplanada deixava-me embalar pelo Madovi. Saboreava o meu fenny com a tranquilidade dos derrotados. Fui assaltado pelo teu porte fino. Reconheci-te. Contrariaste todas as probabilidades de te encontrar. Uma presença estranha numa pátria que sempre te revoltou. Aceitei a tua presença com a naturalidade de um milagre. Fui raptado do meu grupo. Avancei imbuído por uma força de outros tempos .

-Julgava-a em Nova Deli.

Porque saí do meu lugar? Os homens de semblante carregado tendem a refugiar-se no inconsciente. Encontram aí uma justificação fácil para as pequenas patifarias. Depois acrescentam um detalhe casuístico, nalguns casos o destino, aqui e ali as circunstâncias do momento: uma mulher convidativa, um negócio da china, uma festa incipiente ou outra, pelo contrário, de irrecusável dionisismo. A banalidade da minha adolescência assentava, como todas, na recusa das coisas banais. Por essa razão classifiquei-me como um moderado cujos excessos advêm da consciência. Os seus limites, esses sim, eram temperados por um inconsciente. Devo a ele a minha permanência nas regiões raianas do incensurável. Os gregos resolveram chamar a isto equilíbrio. Para minha provocação insistiam em idolatrá-lo. Porque me justifico? Há muito que abandonei este hábito terrível de me desculpar.

-Não esperava vê-lo casado. É feliz?

Porque saíste do teu mundo? Encontrámo-nos com a naturalidade de uma rotina. Os anos foram-te suaves. As rugas apareciam discretamente no teu sorriso. Ficavam-te bem. Estavas mais agressiva. Tornamo-nos amantes como se nada de relevante se tivesse passado na tua ausência.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Anacronismo

Revezar -me na vida. Abandonar este meu posto por instantes. Partir. Ser outro sem a sensação de me corrigir. Antes como se nunca tivesse existido. Depois encontrar-me-ia a mim mesmo com o meu amor ao lado. Será que me reconheceria? Voltar-me-ia a apaixonar? A ventura de um enamoramento repetido sem o saber. Não como aqueles recomeços em Puna na esperança que as coisas voltassem ao que eram. Não voltam porque nunca o foram. Guarda-se o que se acredita ter vivido para sempre. Ter decidido não partir, cumprido o desejo de ser outro na tua Índia imaginária. A Índia de Jaya.
Os espíritos racionais não se podem dar ao luxo de viver atormentados por uma reminiscência trágica. Tenho toda uma vida para construir. Provar ao meu pai quem sou. Por que decidi seguir outro caminho. É tarde. A minha família é Florinda. Os meus filhos. Gostaria de ter alguém com quem desabafar numa caçada, após uma bebida forte, talvez numa saída clandestina com um cúmplice de ocasião. Vivo rodeado de gentios. Sofro todos os dias por não ter saudades da minha terra. Por ter medo de regressar e encontrar tudo o que não esperava ver.
A minha guerra é no outro lado de África. Numa terra de oportunidades para enterrar tudo. Os desabafos são uma magnificência proibida.
Esta noite sonhei em Concani. Já não falava a língua há demasiado tempo ainda que tenha sido sozinho.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

S. Francisco Xavier

A procissão seguia entre cânticos. Já tinha avistado várias vezes o corpo incorrupto do santo dos santos. Era o corpo por demais visitado. Parava a olhar o féretro de prata e desejava que me poupassem daquele sofrimento. Ao corpo faltava um pedaço da coxa, um braço e vários bocados de carne amputados por fiéis fervorosos. Temia a morte como todos, mas pior era ver as minhas entranhas disseminadas pelo mundo. O meu tio falara-me com especial afeição de um pedaço de intestino levado por Francisco Mastrilli para as Filipinas. Um pedaço de S. Francisco Xavier adorado por todos. Tudo me arrepiava. Ao intestino davam maior importância. Eram as primeiras partes a apodrecer. Mas aquelas entranhas desafiavam a razão. Recusavam-se a perecer. Outros relatos causavam-me pior arrepio. As mulheres que tinham arrancado com a própria boca tiras de carne de um corpo morto há dezenas de anos. Pedaços de um santo que lambia as chagas dos leprosos ainda em Itália. Eu estava ali, como todos, Hindus e Cristãos unidos por uma devoção àquele corpo místico. Uma devoção necrófila. Procuravam o êxtase que o santo predilecto havia sentido.

A litania parecia interminável. Afastei-me para um pequeno passeio. O meu tio acompanhou-me pelas ruínas da cidade. Depois de passar o convento de Stª Catarina seguimos pelas ruas de outrora engolidas pela selva. Falei-lhe do meu desprezo pelos Holandeses e de como os Ingleses nos haviam traído. O despovoamento da cidade simbolizava o esplendor de tempos difíceis de imaginar. Esperava que o meu tio se sentisse impressionado com o que tinha aprendido no programa oficial de liceu. Irritou-se. Mandou-me calar. Regressámos em silêncio e quando voltámos a avistar a multidão interrompeu a marcha. Agarrou-me pelo pescoço junto à nuca.Fez-me olhar em frente.

-Aqueles são a verdadeira causa das ruínas que viste. Uma multidão de mestiços. Aqui somos todos descendentes de soldados corruptos cruzados com as piores castas do Concão.

Conheci desde sempre a história da família. Ainda hoje sinto um estranho orgulho de não ter sangue branco. De não sermos descendentes. Por vezes sentia que a minha família se transformava numa desordem difícil de entender. Crenças e revoltas ininteligíveis.
Regressámos em silêncio. Só voltaria àquele túmulo para rezar 33 anos depois. No dia 16 de Dezembro 1961. A cidade voltou a partir para pedir ao santo mais um milagre. O Santo resolveu nada fazer. Mesmo morto continuou a sua saga de milagres. A mostrar a mesma sensatez que quando percorria as ruas da cidade apelando à conversão. Apenas o culpo por ter escrito a D. João III a apelar à instauração da Inquisição em Goa. Tudo o resto lhe é desculpável. Afinal o que poderia ter feito?

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Mulher

A Rosu esperava-me na varanda. Acabava de chegar de uma missão na selva. Florida tinha conquistado o seu coração. Talvez tivesse sido ao contrário. A Rosu percebeu desde o primeiro momento o quanto ela era importante para mim . Entendeu a animosidade de toda a família, a minha revolta, o olhar perdido de Florida. Aos poucos, discretamente, introduziu-a na casa. Explicou-lhe o lugar de tudo e mais tarde tentou explicar-lhe o das pessoas. A Rosu nunca colocou uma máscara de autoridade . Limitava-se subtilmente a tecer breves considerações sobre as preferências de cada um. Explicou-lhe os momentos exactos de cada aproximação. Nunca deveria tentar nada quando tivessem todos juntos. Seria tudo muito mais difícil. Uma espécie de relutância. Um deleite mórbido em excluir.

- Bai gosta de tomar o seu brandy na sala depois de jantar. Não tente nada por aí. Aprenda a jogar eleven. Falta-lhe companhia para o jogo.
Não gosta que a vejam beber.

As expressões teimavam em endurecer-se quando falava. As conversas cessavam quando a viam. Por vezes, chegavam ao ponto de ir baixando progressivamente o tom até se calarem de vez à medida que se aproximava. Quando passava por casualidade num corredor da casa, desviavam-se subtilmente, faziam um pequeno compasso de espera e arrancavam a passo apressado.
Tudo isto a humilhava. Tentara esconder a sua percepção dos gestos desagradáveis. Ignorou as feridas, o inferno em que o seu mundo se transformara. Estava habituada à sumptuosidade da sua casa, às festas e ao piano por altas horas. Este universo taciturno deprimia-a. A comida era ridiculamente frugal. Não davam festas e recusavam os poucos convites que recebiam. Todo o dinheiro da sua nova família servia apenas a suprema causa da poupança.

- O seu sogro tem a vista cansada. Tem cada vez mais dificuldade em ler o jornal de uma ponta à outra. Tome-o por casualidade e partilhe em voz alta alguns artigos. Está sempre à procura de qualquer coisa nova. Mas o esforço que faz já não justifica as poucas noticias que vão deixando publicar por estes dias.

Sorriu ao ver-me regressar. Era o seu sobrinho secreto que voltava são e salvo. Agarrou-me o braço e puxou-me para um canto da casa. Pôs-me a par de tudo. O Ambiente estava cada vez pior. O casarão tornara-se demasiado pequeno. Não havia aproximação possível. Ao entrar no quarto olhei para o que restava de minha mulher e abracei-a ternamente . Há quatro semanas que estava fora e era demais para recém-casados . Os meus braços cercaram-na. Tentei restituir-lhe alguma vida. Quando a soltei prometi-lhe uma casa só para nós.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Traição


Fui cedendo em coisas insignificantes. Tornaram-se maiores. Encontrava-me num equilíbrio frágil em que a minha vontade era aglutinada pela necessidade. A minha independência foi corrompida pela ambição. Não era a ambição mas uma força maior. Conduzia aos poucos a minha vontade para a grande marcha da comodidade, das pequenas pressões. Surgiu a incapacidade de dizer não.Começaram por me pedir a colaboração em pequenos planos de defesa, na elaboração de mapas e estradas secundárias. Todas as estradas eram secundárias, demorava uma eternidade em deslocações num território exíguo. Explicaram-me a natureza sigilosa do que fazia. Nunca manifestei qualquer interesse em falar do meu trabalho a ninguém. Nunca manifestei interesse pelo que fazia. Jamais me passou pela cabeça partilhar um conjunto de desinteresses com os demais. Não compreendi o ridículo da recomendação.
O Colaço era jovem e tinha dentes tortos. Era um excelente desenhador. Certo dia o Major Martins chamou-me ao seu gabinete. Havia fortes suspeitas de participação em reuniões. Os encontros daquela natureza estavam proibidos. O Colaço mais do que ninguém sabia disso. Costumava ficar sozinho no serviço a acabar pequenos trabalhos. A sua dedicação era exemplar. O Major perguntou-me se estava a par da delicadeza da situação.
- Compreende, trata-se de vigiar um colega. Pessoalmente não acredito em nada do que se diz, mas temos de ter confiança na idoneidade dos nossos alicerces. Acima de tudo quero que se investigue para remover qualquer suspeita.
O Colaço tinha muito trabalho e as horas extraordinárias no gabinete produziam os seus frutos. O trabalho aparecia feito. Nunca necessitei de lhe dizer nada. Detesto repreender pessoas. Mandaram-me estar atento a um colega…A família Colaço era acolhedora. Havia almoçado em sua casa por diversas ocasiões durante uns trabalhos próximos de Nuvem. Cheguei a pernoitar lá. Deram-me o melhor quarto. A sua mulher sentou-me à mesa de manhã e deu-me doce de Jaca acompanhado de leite de búfalo. O valor da hospitalidade tinha sido respeitado.
-Vi-o levar trabalho para casa. Eram pequenos mapas. Acho que não nos devemos preocupar. Nada de mais Sr. Major.
O Major mostrou-se preocupado. Pediu-me discrição absoluta. Explicou-me a gravidade da situação. A polícia andava a segui-lo. Tinham fortes suspeitas de ligação aos agitadores. Havia sido referenciado como potencial terrorista. Mas o Colaço não tinha nada de terrorista, era um homem pacato. Lembro-me de o ver fumar tranquilamente os seus cigarros no intervalo do serviço. À noite, durante o mês de Maio, parava num cruzeiro próximo de Campal e rezava o terço no memorial erguido pelas vitimas do naufrágio da embarcação proveniente da colónia de Adém. Confidenciou-me uma aflição peculiar pelas vítimas do mar. Rezava especialmente por elas, para que passassem o mínimo de purgatório.
-Ninguém merece morrer no mar. É belo demais para suportar a calamidade dos corpos flutuantes. É uma morte contra-natura. Não cabe ao homem conquistar todos os confins da Terra. Ele acaba sempre por devolvê-los às praias. Acho que se revistassem os cadáveres encontrariam um bilhete de Neptuno: “Não tive culpa. Não deveriam estar aqui”.

Contemplei o cadáver em silêncio. Rezei disfarçadamente o terço. Abracei a sua viúva e enxuguei-lhe as lágrimas. Demorei-me a sair.

- É uma tragédia para todos. Excelente camarada.

Mas aquele velório era uma consequência da minha inocência. Estávamos em guerra e só agora me apercebia disso. Bastaram umas palavras irreflectidas para provocar a morte. Fui eu que te matei meu bom amigo. Tive vontade de confessar a minha culpa. Sou um cobarde. Os colegas riam-se da tua beatice. Achavas que era o único que te compreendia. Comecei por ouvir na rádio a noticia da tua morte. Tinhas sido vítima de uma acção terrorista enquanto estavas na fronteira Leste. Era um grupo de infiltrados que te haviam assassinado. Mas naquele dia não tinhas ido para Leste. Estavas em Pangim, tal como eu.Os teus carrascos eram os colegas para quem trabalhavas com tanto apreço. Sou eu.
Aguardei a tua chegada ao cemitério. O féretro passou pelos portões de ferro e percebi que não tinha coragem de entrar. Senti a tua força a impedir-me a passagem. Convidaste-me tantas vezes para a tua casa e nesse dia barraste-me a entrada da tua última morada.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

A febre

Estávamos em Julho. Regressava pelos campos de um passeio a D. Paula. A monção abatera-se impiedosa sobre Goa, inundando os campos. Os búfalos eram os únicos que pareciam divertir-se nos arrozais perante o brotar pujante de uma imensa colónia de mosquitos. Era a vida que ganhava terreno. Desafiava os homens. Ria-se da sua vontade perpétua de a domesticar. Em poucas semanas a natureza tinha varrido açudes, alagado cidades, levado pessoas. À medida que caminhava fui sentido uma ligeira fraqueza, depois uma tontura, até que o meu corpo sucumbiu febril. A estrada tornou-se mais extensa. Queria chegar a Panjim. Precisava de voltar para casa. Agora os búfalos flutuavam nas águas e pareciam querer barrar-me o caminho. Tudo demasiado rápido. Os seus olhos estavam vermelhos. Apercebi-me pela primeira vez do quão frágil era a minha existência. Procurei ajuda. De nada valia naquele momento toda a influência de meu pai. Recordo-me de ter vislumbrado um vulto. Parecia rir. Fui assaltado por um último pensamento enquanto perdia os sentidos: a doença faz-nos esquecer as diferenças. Reduz-nos a um espaço no qual todos somos irmãos.

Acordei na minha cama. Paulina sorriu. Disfarçou a inquietude.
Havia sido levado pelo guarda livro de um cliente de meu pai, que por milagre regressava de uma visita a uma prima, quando me descobriu na sombra de uma jaqueira.
Chamaram o Dr. Azevedo. Era um dos melhores médicos de Goa. Pegou-me na mão. Tinha um olhar apreensivo.
- É preciso baixar-lhe a febre.
Acho que voltei a perder a consciência. Paulina segurava a minha mão. Agarrava-a com a força de quem quer vencer a morte. Contraiu o rosto. Seria para mim ou para afastar a morte? Quando acordei ela ainda lá estava. Continuava a agarrar-me a mão.

- Recomendo que seja restringido o contacto. Deve evitar o contágio. Os medicamentos ajudá-lo-ão a passar a noite. Volto amanhã.


Olhou para mim como quem se despede de um condenado. Não me recordo de o Doutor ter voltado. Disseram-me que voltou. Saiu do quarto mais preocupado. Desconhecia o mal que me atacava. Era necessário hidratar-me, recomendou muita água de coco. Paulina levantou-me a cabeça, colocou o copo nos meus lábios e esperou pacientemente pelas minhas forças. Os dias seguiram-se, sempre iguais, pautados por períodos de consciência. Voltaram-me a dar água de coco.
As únicas pessoas que estavam autorizadas a entrar no quarto eram a minha mãe, o Dr. Azevedo e a Paulina. Mas Paulina não precisava de entrar. Não chegou a sair.
Os amigos de casa evitavam visitas. Sugeriram à minha mãe diferentes infusões, ervas, emplastros. Talvez fosse mau-olhado. O Dr. Azevedo irritou-se. Confiscou todos os frascos de mezinhas.
Vi o meu pai pela primeira vez nesses dias. Talvez já lá tivesse estado. Colocou-me a mão na testa. Depois passou-a pela testa de Paulina sob o pretexto de comparar a temperatura. Repousou a sua mão vagarosamente nos seus cabelos e chorou. Ela pediu-lhe para sair. Fiquei sozinho. Quando acordei estava a ser levado por Paulina e Rosu pela varanda da casa. Era de Noite Ao passar junto do quarto, perto da sala, vi na penumbra da porta semi-cerrada que toda a família estava ajoelhada em frente ao oratório. Era um oratório trabalhado de forma minuciosa, talvez por artífices hindus, que representava a sagrada família. O Menino olhou enternecido. O seu rosto era iluminado pelas velas. Estava longe. Rezavam o terço e não se aperceberam da minha saída.
Acordei numa casa hindu. Era a casa dos familiares de Rosu, para onde eu costumava fugir durante as festas do Ganesh. Era uma casa pobre, mas faziam questão de me empanturrar com os melhores doces. Era a festa mais importante do ano.
Permaneci de pé. Paulina segurava-me nas costas e uma pequena fogueira foi acesa por baixo do tecto de colme. Para minha surpresa Rosu pintou a testa e circulava à minha volta, de olhar ameaçador, agachando-se diversas vezes. Recitava um mantra imperceptível. Pegou numa malagueta verde e passou-a pela minha testa. Repetiu o mesmo gesto vezes sem conta e depois colocou a malagueta na fogueira. Pegou numa malagueta vermelha e reiniciou o ritual. Depositou-a no fogo e desta vez ouviu-se uma pequena explosão. Seria a morte a vir finalmente ao meu encontro?
Vim a saber, mais tarde, que a explosão se devia à raiva do mau-olhado ao ser queimado.

Recuperei milagrosamente da minha enfermidade. Nunca falei do sucedido a ninguém, pois bastaria uma palavra minha e a Rosu seria expulsa de casa. A minha mãe não tolerava bruxaria. Eu, tal como ela, nunca acreditei nesse tipo de coisas. Até hoje sinto que devo a minha vida à Rosu.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Despedida

O Congresso foi perdendo a sua chama. Os oportunistas chegaram, os idealistas do movimento de libertação foram perdendo o seu espaço, saíram aos poucos. Nerhu tinha criado a terceira via, um grupo de países não alinhados com nenhum dos dois blocos. Fomentou uma economia proteccionista, favorecia as empresas indianas, rodeou-se de jovens quadros. Jaya e o marido encontraram o seu espaço. Toda a sua dedicação deu origem à natural recompensa: num emprego em Nova Deli.
Despediu-se de mim no último ano do curso. A Índia precisava dela, não havia forma de virar as costas à luta, à construção da nação. Mas eu também precisava de ti. Se não tivesses ido alguém havia de te substituir, o país tem milhões de habitantes! Porque tiveste que ser tu a ir? O único sítio onde eras insubstituível era nas tardes em que faltava às aulas e ficávamos no meu quarto de estudante. O meu coração era o único lugar onde eras realmente necessária. Gostava principalmente da tua pele em Julho. A monção abatia-se sobre Puna, a terra ganhava outro cheiro e a tua pele colava-se à minha. Ao entardecer vestias-te e regressavas a casa. Não me levantava para despedidas, aquele momento era insuportável. Vivia-o todas as semanas enquanto o teu marido inspeccionava os quartéis do estado. Permanecia deitado, letárgico. Ficava a imaginar a melhor forma de subtrair esse asco das nossas vidas. Talvez se ele descobrisse a verdade te deixasse voluntariamente, mas já tinha dado todos os sinais àquele idiota e não havia maneira de ele desconfiar. Seria bom que te expulsasse de casa. Partiríamos juntos para Goa. Ninguém precisava de saber do teu passado. Baptizar-te-ia, casaríamos numa Igreja. Eras capaz de mudar de religião por mim? Eu fui. Nunca acreditei naquelas reuniões que me obrigaste a ir. Achava ridícula a forma como se vestiam, a forma como me passei a vestir, as minhas ideias políticas. Nunca foram minhas, eram convicções implantadas por força das circunstâncias, pela agressividade dos teus olhos. Depois fui-me modificando, absorvi todas aquelas doutrinas, passei a acreditar. Fazia-me falta a dinheiro da quota mensal entregue ao partido. Já naquele tempo desconfiava que a corja que assaltou o poder andava a enfartar-se com o meu dinheiro. Eram um bando de fundamentalistas hindus disfarçados de socialistas. Insuportáveis. Acreditei naquela gente ou fingi para mim mesmo? No fundo eram políticos. Se acreditei neles foi por que quis fazer parte do teu mundo. Sofro pelas coisas que disse ao meu pai nas férias. Ele não merecia, mas foi a única vez que tive coragem de o enfrentar, de lhe falar nos olhos. Quando regressei de canudo na mão lá estava ele no cais da segunda classe à espera. A carruagem da frente passou por ele, tentei acenar-lhe. Não me viu. Estava mergulhado numa resignação profunda, no tormento dos meus discursos. Depois viu-me de fato a descer mais adiante.
- É muito melhor viajar em primeira classe.
O meu pai sorriu. Nunca me perguntou a razão da minha metamorfose. Atribuiu-a um devaneio de juventude.
Jaya deixou-me por uma cargo qualquer. Se tivesse sido por outro homem, mesmo pelo marido parecer-me-ia legítimo. Compreendo que se ceda à força da paixão. Não entendo a tua sede de poder.
- Se algum dia for a Nova Deli sabe onde me encontrar. O nosso amor não tem espaço na vida. Não posso mudar a vida. É preferível abafar o amor. Se conseguir entender isto será mais fácil. Faço-o pelos dois.

Não encontrei paciência para tanta futilidade. Terá retirado aquelas palavras de um filme de Bollyhood?

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Sarapatel

Ficavas sentado no topo da mesa. Era-nos proibido falar durante a refeição. Ao mínimo barulho olhavas com ar severo e franzias o sobrolho. Ali ficavas toda a refeição na tua majestade de velho patriarca sentado à cabeceira em silêncio. Eu sentava-me à tua esquerda e a mãe à tua direita. As minhas irmãs nunca aceitaram a sua posição subalterna na mesa, a tua preferência por mim irritava-as. Acrescentavas-me sempre alguma injustiça no trato, um mimo que fazia crescer a inveja entre as minhas irmãs. Depois fechavas laconicamente a conversa:
- Afinal é o nosso morgado.
Iniciavas um esboço de um monólogo de frases curtas, incipientes, seria para conservares a distância da autoridade? Talvez fosse por nos considerares seres inferiores. Nunca nos achaste dignos de ti.
- Não seja indecente. Aperte o botão.
Mas havia tanto que gostaria que tivesses partilhado comigo, nunca conheci as tuas opiniões sobre nada. Por vezes lia um dos teus artigos no Heraldo e descobria uma sensibilidade enorme, uma pessoa empenhada no bem comum. Recordo-me de um desses artigos em que falavas do papel da música na formação das crianças ou o outro sobre o poder da oração e da fé. Apanhava-te sozinho e confrontava-te. Tentava encetar um diálogo enquanto segurava o jornal com a tua foto. Nunca me ensinaste nenhum instrumento, no entanto ouvi comentários sobre a forma como fazias o violino chorar. Deveriam referir-se a um passado longínquo. A uma face oculta que talvez partilhasses com os da tua espécie.
Não havia nada pior que as refeições. A sala era composta por janelas de madre pérola incrustadas em pequenas ripas de madeira. A luz atravessava as formações calcárias conferindo uma atmosfera inquietantemente calma. A criada interrompia a paz daquele sepulcro sussurrando pequenas perguntas em concani.
Nesse Domingo almoçamos todos juntos. Não. Obrigaste o meu filho a comer na cozinha. Irritavas-te com o desassossego do teu próprio neto. Também nunca gostaste da Florinda. Disseste no dia do nosso casamento que era naturalmente buçal. Foste tu um dos inventores do meu casamento, recordas-te? Passei esse dia como um actor à espera que o pano caísse. Fui eu que disse sim, mas não era eu que lá estava, eras tu. Nunca te odiei por isso. Ela faz-me feliz. Nesse dia tomaste uma decisão ainda mais polémica. Terminaste placidamente a sopa e enquanto a criada recolhia os pratos falaste. Poderias ter feito uma pequena introdução, uma breve explicação, mas não era o teu género.
- A partir de hoje passa-se a falar concani nesta casa. Estão proibidos de falar português à mesa.
Nunca reparaste que mais ninguém falava à mesa além de ti? E quando o fazias que importava a língua se o diálogo era inexistente?
Compreendeste a mudança. Preferiste antecipar o inevitável em vez de esperar que o destino te batesse à porta. Apoiei a tua decisão. Nunca te deste ao incómodo de saber o que pensava sobre o assunto.

A Rosu chegou com uma travessa de arroz branco e sarapatel. Não notou diferença alguma.



terça-feira, 22 de julho de 2008

Missa Dominical

Tinha o hábito de ir todos os Domingos à missa pela manhã. A comunidade Católica em Puna era muito reduzida. Algumas irmãs irlandesas, alguns indianos, muito poucos goeses. Nunca fui muito devoto, mas a Índia cataloga as pessoas por religião, casta, estatuto. Era a minha identidade, não havia forma de fugir, era a Índia. Nesse Domingo a missa decorreu sem imprevistos. O Padre era um Kerala, raquítico, progressista, cheio de ideias novas. Celebrava a missa descalço, na forma tradicional de os Hindus mostrarem respeito pelo templo. As suas homilias eram carregadas, com mensagens fortes de combate à pobreza, de tolerância religiosa, de respeito pelos valores da liberdade.
O evangelho era a leitura da mulher adúltera pronta ser apedrejada. Leu pausadamente, visivelmente emocionado pela sabedoria de Jesus. Um a um todos se retiraram.
Seguiu-se mais uma homilia forte, dirigida para a necessidade de perdoar, de dissecarmos a nossa consciência antes de julgarmos o próximo. A celebração sossegava as minhas saudades. A missa aproximava-se do fim e após a comunhão quando regressava piamente ao meu lugar, a minha expressão solene desvaneceu-se ao olhar para o banco detrás. Esperei-a à saída.
- Julgava-a Hindu.
- E eu católico a si. Não deve ter prestado muita atenção às leituras. Sabe foi a primeira vez que entrei numa igreja… Deve saber que sou casada? O Cristianismo é engraçado, é uma religião fácil. Seduz-me a noção de pecado e perdão. Não me revejo nos padres mas a religião é engraçada. Porque decidiu aparecer na conferência? A minha religião não é puritana como a sua. Conseguiriam mais fiéis se ornamentassem as igrejas com a voluptuosidade dos nossos templos. Sem reprodução também desapareceriam.

Mas tu já estavas perdoada antes de pecar. Ninguém te apedrejaria. Há uma pureza no teu rosto. Deus compadece-se de seres como tu. Foste visitar a sua casa para me veres, sabias que ali também era o meu lugar. Não devias ter vindo ao meu encontro Jaya.

Cadeira de Vime

O meu filho mudou. Não digo que já não seja meu filho, mas custa-me reconhecer o homem que vi partir. Esperei na estação, no cais mais próximo da saída destinado aos passageiros da primeira classe, mas ele não apareceu. Todos os anos vinha pela altura das férias passar um temporada a casa, ia para o último ano do curso e aqueles dias eram para mim os melhores do ano. Depois reconheci um vulto ao longe, todo vestido de algodão branco, com um poreem, vindo do cais da segunda classe. A mesada era sobejamente suficiente, não compreendia, e havia uma inquietude no olhar, um orgulho insano estampado no rosto. Herdara os meus olhos verdes, a minha altivez no andar, sempre o ensinei a caminhar na rua com as costas direitas, - Pensa que és uma pessoa realmente importante – Mas ele sempre se sentira realmente importante não era preciso dizê-lo. Mas agora era eu quem estava de ombros caídos. Não me deu explicações. Começou a falar da União Indiana, da necessidade de se abolir as castas, de transformar a Índia, de os indianos vestirem tecidos nacionais. Disse-me que a saída dos Portugueses era uma inevitabilidade. Mandei-o mudar de assunto, mas ele insistia em falar dos progressos económicos, de uma nação que desabrochava para a modernidade. Pelo caminho continuei a ser lapidado por uma doutrina que não era nova, mas que não esperava ouvi-la do meu próprio filho, não era para isto que o andava a sustentar em Puna.
Ao chegar a casa sentou-se com as pernas cruzadas em cima do tampo de vime na velha cadeira da sala, posição que manteve em todos os convívios daquele ano. Assumia ares de asceta Hindu. Olhar distante. O tampo acabou por se romper e os empalhadores custavam uma fortuna. Consolou-me dizendo que aquele estilo nada tinha de Marastra, tratando-se de mais um luxo ocidental, uma herança de um colonialismo barroco que já se despedira à muito do seu esplendor. Agora o futuro pertencia a nós indianos. Será que me estaria a incluir nessa enorme família?
Afastei-me da sala por temer os infindáveis discursos que me tinham torturado quando regressava da estação. Sentia uma falta de autoridade e todas as tentativas de restituir a minha posição na casa afastavam-me do meu filho.
Numa manhã enquanto inspeccionava o avanço dos trabalhos nas minhas propriedades reparei que os manducares já não se levantavam à minha passagem, hábito que sempre insisti que mantivessem, não por capricho estético, mas por necessidade de conservar o equilíbrio natural das coisas. Os manducares viviam nas nossas terras. Trabalhavam e retiravam da terra o seu sustento. Havia certamente abusos tal como no Alentejo com os rendeiros. Eles eram os primeiros habitantes de Goa. Falavam um concani puro, mais correcto que o dos católicos, sem estrangeirismos.
No dia seguinte pedi ao capataz para se apresentar no alpendre da nossa casa. Descobri que o meu filho tinha organizado diversas palestras, junto dos trabalhadores, onde os instruíra para a Índia Moderna.
O capataz vira-se proibido de praticar qualquer resquício de feudalismo, palavra que não entendeu e aproveitava a oportunidade para me pedir explicações sobre o tipo de conduta a adoptar no futuro.
As férias chegavam ao fim e pelo menos por um ano conseguiria adiar o meu pesadelo. Demorei algum tempo para resgatar a normalidade, mas por fim, consegui reorganizar a estrutura da casa. Entre mim e o meu filho havia algo que estava irremediavelmente perdido.

Fui despedir-me do meu filho à estação e ao regressar aliviado a casa deparei-me com uma inscrição na parede do estábulo contíguo à casa: “A terra é de quem a rega com o suor do seu rosto”. Era a letra do meu filho.

Emancipação

Puna adquirira um esplendor novo. As ruas foram limpas, enfeitou-se as casas, preparou-se a festa. O primeiro aniversário da independência deveria ser celebrado com pompa e circunstância. Um dia de união nacional, de exaltação do espírito patriótico, porque um país também se constrói com fanfarras e sessões solenes.
Cinco homens afixavam vagarosamente cartazes na rua, um a um, demorando a tarde a percorrer a avenida . Anunciava uma conferência: “Maharshi Karve - contributes for women emancipation”. Fazia parte de um ciclo de conferências organizado por antigos membros do movimento de libertação. Inseriam-se nas comemorações. Entre os oradores destacava-se um nome que permanecera latente na minha memória no último ano. Decidi ir. A sala estava cheia, um calor sufocante e uma voz sobressaía ao compasso da trepidação das ventoinhas do tecto - Eras o único ponto de interesse na sala, o meu pequeno oásis - Jaya estava mais bonita que há um ano. Usava um sari preto, uma trança apanhada, uma voz empolgante. Fixaste o teu olhar quando entrei e a tua voz oscilou para logo a seguir retomares, como dantes, cristalina, indiferente à minha chegada. Foi a tua maneira de me chamares, de me dizeres que aguardavas a minha chegada com a pontualidade de um encontro.
Mas depois de ti havia mais oradores, um sem-fim de palavras, palmas, novos discursos que recomeçavam e acabavam na minha irritação. Na primeira fila do auditório lá estava o teu marido a aplaudir, delirante, com os seus dentes amarelos (estavam mais tortos). Já te disse que o odiei esse pulha mesmo antes de o conhecer?
Seguiu-se um pequeno beberete, esperei que estivesses só, mas os panegíricos não te largavam. Devo ter sido o único que não prestou atenção ao que dizias. Só a ti. Agora conseguia sentir o teu cheiro. Deves ter discursado bem, ninguém parecia querer libertar o teu espaço. Aproximei-me.
- Não sabia que se interessava pelos direitos das mulheres na Índia.
Nunca me interessei. Não entendo porque conduzes a conversa para um assunto do qual nada entendo. Não podemos voltar a falar da vida, de ti? Pediste-me um minuto, retiraste-te, esperei. Deixaste-me só na sala.

Zuari

A minha formação é em agronomia, mas talvez me tenha formado na arte de pensar, se é que existe alguma. Penso que talvez tenha mentido para arranjar emprego. Acho legítimo. Um homem não de define pelo que faz mas pelo que é. Não suporto quando me tratam por engenheiro. Não sou o Sr. Engenheiro. Há uma identidade em mim, um Eu que tem um nome, superior ao que faço. Pouco me diz aquilo que faço ou o nome da minha família - Purificação Menezes - quem se lembraria de pôr purificação a um ser iníquo? Mas eu era o Sr. Engenheiro era nisso que me tinha tornado

- Sr. Engenheiro os rios são estradas. É fácil defendê-los a partir da foz é isso que sempre se fez. Sempre tentaram atacar-nos a partir daí. É de lá que virá o perigo.

Mas não estou interessado em defender rios. A pertencerem a alguém deveria ser ao mar, é para lá que marcham desde o princípio dos tempos. Agora constrói-se barragens e esvazia-se o mar, este não reclama, não tem títulos.
Mandaram-me fazer o estudo da bacia hidrográfica do Zuari . É importante estudar a sua navegabilidade e o seu assoreamento para que os barcos possam ir cada vez mais longe buscar o tão precioso ferro. A indústria não pára de se expandir e todos os dias vêem-se sair barcaças de minério. É um pedaço de Goa que é vendido para se transformar num parafuso.
Temo que quando terminar este trabalho me darão outro rio e não faltam rios em Goa.

Ainda me recordo de ser Agrónomo? Não entendo nada de agrimensura e menti-lhes ao dizer que tinha formação na área. Alguém terá confundido Agronomia com Agrimensura. Talvez me tenha enganado propositadamente ou talvez esteja a ser engolido por uma fatalidade do destino.
Mas o que faço prevalece sobre mim e vejo-me forçado a comparecer todos os dias no trabalho, a ir a toda a espécie de reuniões. Discute-se e ninguém considera a hipótese de estar de passagem, de ser um peão na ironia da história.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Pangim

O regresso faz-nos renascer. Espera-se que nos seja restituída uma parte de nós que não viveu. Tenta-se apanhar um comboio em andamento. Voltar à velha casa é como recuar à meninice. Depois descobre-se que o tempo não esperou por nós. As diferenças vão-nos provocando pequenas moças. Quem autorizou o meu pai a cortar a mangueira? Quando posso voltar a trepar e abocanhar o suco amarelo, ter o prazer de saborear nas minhas próprias mãos as mangas Hilário…Agora já não te consigo ouvir - Desce imediatamente espécie de saguim! - Disseste que estava a cair em cima do telhado, mas a árvore era minha, foi de lá que caí, era ali que me puxavam as orelhas quando descia. Espero encontrar a minha mangueira em cada retorno para descobrir o que tu a mandaste remover da minha vida. Encontro o sufoco de tudo o que não esperava encontrar. Porque não quiseram esperar por mim? Deixo de pertencer. As velhas caras saúdam-me com distância, ter-me-ão visto na véspera? Por que não fizeram uma festa de boas-vindas, não organizaram nada. Estive longe, sofri, esperava a solidariedade da minha gente.
Um carro buzinou enquanto subia ao Altinho. Não olho. Não estou habituado a que me saúdem na rua. A parte de mim que andava na rua em Puna dissolvia-se na multidão. Havia o doce refúgio do anonimato.
-Olá Sr. Engenheiro!
Será que me vão continuar a proibir de subir ás árvores? Está a falar comigo. Tenho uma entrevista marcada no palácio do governador. Fala-me de grandes projectos de desenvolvimento, da exploração do minério, da necessidade de cartografar, de construir estradas.
- O seu pai falou-me do seu empenho. Notas fantásticas. Agora já sabe, Sr. Engenheiro, temos um império para desenvolver. A Pátria precisa de homens qualificados. Amanhã pelas nove horas, está bom para si?
O meu pai omitiu alguns detalhes. Deve-se ter esquecido de lhe dizer que mandou cortar a minha mangueira. A filha da casa que me criou não esperou por mim para morrer. Era a minha mãe. Paulina fora abandonada numa manhã à porta de nossa casa. Acabou por se tornar minha ama. Nunca casou. Era filha bastarda de um a amigo de meu pai. Era filha de uma relação fortuita. Os amigos trocavam favores entre si e as crianças eram abandonadas numa permuta previamente acordada. Foi a verdadeira mãe que conheci, bastava ter-lhe dito adeus. Devia lá ter estado para lhe segurar a mão no derradeiro momento. Era ali que estava a minha Pátria.

Locomotiva a vapor


Regresso a casa devagar. Guardo a tua imagem como um breve contacto entre dois mundos que nunca se deveriam ter cruzado. A tua face penetra-me. Perturba-me ao ritmo da trepidação da locomotiva. Tento encontrar argumentos para te culpar a ti, aos ingleses, aos nacionalistas, ao teu marido…desenvolvi-lhe um ódio visceral, notaste? Como podes não sentir nojo de dividir a vida dessa maneira? Quando entrei na tua sala vi uma fotografia a preto e branco. Estavas com toda a tua beleza condensada prestes a eclodir. Os anos de casamento amadureceram-te. Estás mais bela. Depois um enorme contraste, uma dor lacerante, aquela presença desagradável. Um horror. Detesto vê-lo assim a partilhar a tua felicidade, a sorrir para a eternidade. O diafragma dessa máquina diabólica deveria ter-se fechado só contigo, diáfana a receber as sombras do entardecer; um contraste perfeito. É assim que te vou recordar nesse instante, sem nunca lá ter estado, nesse instante que não chegou a acontecer.
Volto agrónomo e apaixonado. O meu pai fez contactos para um emprego e um casamento. Aguardam-me várias propostas. Não sinto vontade de iniciar trabalho algum e muito menos arrumar a minha vida. Ouvi rumores de uma rapariga de Velim de boas famílias, trará consigo um bom dote. Parece que abriu uma vaga de agrimensor . Os portugueses finalmente se interessam pela orografia do nosso estado. Também os odeio tal como a mim. Tentarei iludir o meu destino, escapar à censura de meu pai. Mas o ódio entorpece-me o discernimento, turva-me o raciocínio como a certeza de uma bebedeira.

Elegi-te na multidão para seres o objecto, o reflexo de um ser que se ocultava em mim. Este é o meu anátema, o meu abismo sentimental.

Puna


Foi-me apresentada pelo marido. Não me consigo recordar da casa onde tinha lugar a recepção. Era um cocktail onde se encontravam muitos europeus, essencialmente Ingleses. A maioria era militares acantonados em Puna. Havia na sala alguns indianos, filhos da elite local, sobretudo burgueses que haviam enriquecido no comércio com o Império.
Todos eram estranhos naquela sala, onde o único elo comum era o sentimento de não pertença a coisa alguma. Para mim, esse era o género de sentimento que tinha experimentado toda a vida e talvez por isso me sentisse mais à vontade.
O marido era bastante mais velho e de fraca figura. Fui tomado por europeu, devido à minha tez clara e aos meus olhos azuis.
Os meus olhos fixaram-se nos seus e decidi apaixonar-me. Não sou hipócrita para dizer que foi o destino ou o impulso do coração. Decidi por uma relação baseada numa figura agradável que aparecia diante de mim.
Encetou um diálogo pouco interessante e sem que nada o fizesse prever começou a revelar-se. Partilhou fragmentos da sua existência, gostos, estilos, modos de estar. Falou-me de poesia e da sua paixão por Tagore. Era para ela um símbolo, o sonho de uma Índia emancipada, falava abertamente dos seus ideais e sem que se apercebesse recitei-lhe lentamente:
“Peço por um momento de indulgência para me sentar ao teu lado. Os trabalhos que tenho entre mãos terminá-los-ei depois.”
. Sorriu. Se continuasse tê-la-ia ofendido?
Aceitou espantosamente o meu convite e sentámo-nos no alpendre, no exterior da casa colonial. Preparava-me para declamar: “ O meu coração não tolera o repouso fora do vislumbre do teu rosto”, quando colocou um cigarro na minha boca e acendeu docemente. Engasguei-me. Contemplou-me e viu um jovem universitário. Assumiu um porte altivo, tirou-me o cigarro da boca e saiu vagarosamente a fumar. Um momento antes de regressar à sala voltou-se:
- Espero que conclua os seus estudos com distinção
.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

A Fome

Os cinco homens envergavam um uniforme caqui, de atavio disparo, tinham um aspecto famélico e eram escuros. Pareciam ter receio de importunar a paz da casa, assumindo uma atitude subserviente, o que era irónica para um invasor. A palavra “uniforme” talvez tivesse uma aplicação abusiva, era tudo menos isso. Por felicidade do destino, porque mesmo no infortúnio existem factores de alegria, um deles falava Inglês. O Inglês era a única língua que os filhos da Mãe Índia encontraram para se entenderem. Foi quanto bastou para esclarecer as suas intenções: tinham fome. A fome provocada por uma crise económica que avassalava a Índia. Foi a crise que levou à Invasão numa tentativa de desviar as atenções para o problema real da Índia. Sempre a fome, provocada por um sub-continente sobrepovoado, por um tecido produtivo e industrial devastado pelo colonialismo Inglês, que anulava toda a iniciativa transformadora na indústria e na agricultura.
Mahatma Gandhi tinha falado do respeito pela dignidade humana, do valor da resistência pacífica, educou um povo para os valores mais elevados de Deus e dos Homens. Mas os valores do Mundo são diferentes dos do Faquir de panos como Winston Churchill lhe chamou.
Poderias tu, meu querido faquir, ter conduzido o Mundo com a tua fragilidade física, embainhando exclusivamente a eloquência da tua sabedoria? Será que o teu espírito não sucumbiria também ao poder do poder? A essa força que arrasta todos os homens bem intencionados para a corrupção do corpo e da alma? O teu discípulo mais fiel, Jawaharlal Nehru, que sofreu como tu o jugo imperialista veste agora a pele do lobo.
Descobriu a paixão da subjugação. Descobriu que é mais fácil oprimir que libertar, mas a sua grandeza perdeu-se para sempre nos corações dos que sofrem. Deves ter-te sentido osculado na face por Judas no Jardim das Oliveiras. No fundo é o teu discípulo que te trai. Mas a tua grandeza será sempre messiânica, protegeste-te da mácula do poder saindo de cena. E agora que devo fazer com estes soldados a invadir-me a casa?
Recusaram o dinheiro que lhes ofereci. Limitaram-se a dizer que tinham fome e confiscaram-nos a colheita de arroz. Regressarão amanhã com um veículo apropriado. Esperarei estoicamente o salteador e darei ordens para que ajudem a carregar o arroz. No fundo são homens com fome.

terça-feira, 15 de julho de 2008

A Carta


Recebi uma carta. A letra é do meu filho. Há uma alegria enorme em saber que no Universo alguém se lembra de nós. Depois vem o resto. Gostava de entrar naquela caligrafia, dentro do envelope e ser despachado para junto do meu filho. Não. Queria era que o meu filho fosse despachado em vez da carta. É aqui o lugar dele.
Já não sei onde é a morada de um homem que ficou sem país. Precisará de visto para voltar à sua própria casa? O caminho da diáspora é de sentido único. A esperança de um regresso ilude a realidade. Agarramo-nos com força ao que queremos acreditar, vivemos em função disso e somos felizes. Pensamos que enganamos os outros com a nossa felicidade, mas não nos enganamos a nós próprios. Depois a realidade é cruel, faz-nos sentir em cada dia o peso da razão. Transforma-se no escárnio da nossa consciência.
Esperava encontrar-me bem… Como poderia estar bem? Depois continuava a falar de grandes projectos para Angola, no contributo que dava nas fazendas de café, na plantação de cajus, na dominação de uma praga de gafanhotos. Deve ser difícil exterminar gafanhotos. Creio que o nosso mundo também está a caminhar lentamente para o extermínio. Nós somos poucos, e a única coisa que nos une é sentimento de fracção que nos percorre as veias. Terão sido os Portugueses a disseminá-lo para nos subjugar ou fará já parte da nossa natureza?

Bombaim


Numa ocasião fui visitar a minha filha a Bombaim. Enquanto caminhava pareceu-me reconhecer um conjunto imperceptível de fonemas soltos. Reconheci a língua não pelo que diziam, mas por uma matriz fonética audível a milhas. Estava numa praça, a uns escassos metros do Gate of Índia. As vozes transportaram-me para o bulício da minha casa de encontros, em Taleigão. Estava com os meus colegas do Afonso de Albuquerque, as velhas tábuas de ardósia em cima da mesa, e bebíamos uma Urraca suave. Aguardávamos as raparigas que passavam em fila pelo arrozal. Apenas víamos as silhuetas adelgaçadas por saris multicolores. Era quanto bastava para se acender uma tocha nos nossos corpos imberbes.
Os mais velhos diziam-nos que aqueles encontros preparavam-nos para o casamento, mas eu guardava sempre uma inquietude, um temor pelas labaredas do inferno que a minha vida pecaminosa me reservaria.
Era português sem sombra de dúvida. Agora tinha a certeza. Foi bom ter regressado a casa por breves instantes. Esta cidade está a tornar-se sufocante. A língua reconhece-nos, toca o nosso coração onde quer que nos encontremos. Selecciona-nos na multidão, faz-nos sentir em casa para dolorosamente nos restituir a lassidão da distância.
O calor derretia lentamente o meu corpo, o fumo dos carros colava-se ao suor, pequenos mendigos puxavam a minha roupa no desespero da miséria. Lembro-me que naquela altura pensei se um dia Goa poderia vir a ser assim. Afastei do meu pensamento tais divagações. Os povos caminham lentamente para a liberdade em todo o Mundo - Por que haveria de ser assim?

Primeiro Encontro


Os cinco homens caminhavam em fila pelo socalco que dividia o arrozal. O verde intenso permitia identificar as fardas a uma distância que se ia encurtando à medida que angústia invadia os espíritos. O contacto com o desconhecido sempre foi sinónimo de medo. O medo é absurdo, teme-se e não se encontra uma razão que acalme os corações. A lógica é habitada pelo monstro do medo.
De todos os encontros ocorridos na história não foi a diferença que provocou as carnificinas. Foi o medo da diferença.
O tempo transforma-se em eternidade para todos os que esperam. Contam-se os minutos de alegria de uma mãe que está de esperanças e contaram-se os momentos de tormento para os homens da casa.
Os fracos sabem que quando ousam resistir são massacrados mais depressa do que quando consentem ceder ao lento massacre da integração. Foi por essa razão que os Judeus decidiram esperar na Alemanha e dez milhões de índios forma sistematicamente aniquilados na América do Norte.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Narrador

Há duas realidades dolorosas: a do ser que aspira a qualquer coisa e a outra, do mundo do sofá, do comodismo de um televisor. Por vezes, entretenho-me a fazer zapping e passado um intervalo, que não senti passar, não me recordo de coisa alguma. Existe também o outro, que se coloca num plano prático. Ambiciona uma grande descoberta, qualquer coisa que se destaque e escape a uma mediocridade obsoleta tão fatal como a previsibilidade dos Homens