quarta-feira, 29 de abril de 2009

Hotel Mandovi


Ao fim da tarde, sentado, na lassidão da esplanada deixava-me embalar pelo Madovi. Saboreava o meu fenny com a tranquilidade dos derrotados. Fui assaltado pelo teu porte fino. Reconheci-te. Contrariaste todas as probabilidades de te encontrar. Uma presença estranha numa pátria que sempre te revoltou. Aceitei a tua presença com a naturalidade de um milagre. Fui raptado do meu grupo. Avancei imbuído por uma força de outros tempos .

-Julgava-a em Nova Deli.

Porque saí do meu lugar? Os homens de semblante carregado tendem a refugiar-se no inconsciente. Encontram aí uma justificação fácil para as pequenas patifarias. Depois acrescentam um detalhe casuístico, nalguns casos o destino, aqui e ali as circunstâncias do momento: uma mulher convidativa, um negócio da china, uma festa incipiente ou outra, pelo contrário, de irrecusável dionisismo. A banalidade da minha adolescência assentava, como todas, na recusa das coisas banais. Por essa razão classifiquei-me como um moderado cujos excessos advêm da consciência. Os seus limites, esses sim, eram temperados por um inconsciente. Devo a ele a minha permanência nas regiões raianas do incensurável. Os gregos resolveram chamar a isto equilíbrio. Para minha provocação insistiam em idolatrá-lo. Porque me justifico? Há muito que abandonei este hábito terrível de me desculpar.

-Não esperava vê-lo casado. É feliz?

Porque saíste do teu mundo? Encontrámo-nos com a naturalidade de uma rotina. Os anos foram-te suaves. As rugas apareciam discretamente no teu sorriso. Ficavam-te bem. Estavas mais agressiva. Tornamo-nos amantes como se nada de relevante se tivesse passado na tua ausência.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Anacronismo

Revezar -me na vida. Abandonar este meu posto por instantes. Partir. Ser outro sem a sensação de me corrigir. Antes como se nunca tivesse existido. Depois encontrar-me-ia a mim mesmo com o meu amor ao lado. Será que me reconheceria? Voltar-me-ia a apaixonar? A ventura de um enamoramento repetido sem o saber. Não como aqueles recomeços em Puna na esperança que as coisas voltassem ao que eram. Não voltam porque nunca o foram. Guarda-se o que se acredita ter vivido para sempre. Ter decidido não partir, cumprido o desejo de ser outro na tua Índia imaginária. A Índia de Jaya.
Os espíritos racionais não se podem dar ao luxo de viver atormentados por uma reminiscência trágica. Tenho toda uma vida para construir. Provar ao meu pai quem sou. Por que decidi seguir outro caminho. É tarde. A minha família é Florinda. Os meus filhos. Gostaria de ter alguém com quem desabafar numa caçada, após uma bebida forte, talvez numa saída clandestina com um cúmplice de ocasião. Vivo rodeado de gentios. Sofro todos os dias por não ter saudades da minha terra. Por ter medo de regressar e encontrar tudo o que não esperava ver.
A minha guerra é no outro lado de África. Numa terra de oportunidades para enterrar tudo. Os desabafos são uma magnificência proibida.
Esta noite sonhei em Concani. Já não falava a língua há demasiado tempo ainda que tenha sido sozinho.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

S. Francisco Xavier

A procissão seguia entre cânticos. Já tinha avistado várias vezes o corpo incorrupto do santo dos santos. Era o corpo por demais visitado. Parava a olhar o féretro de prata e desejava que me poupassem daquele sofrimento. Ao corpo faltava um pedaço da coxa, um braço e vários bocados de carne amputados por fiéis fervorosos. Temia a morte como todos, mas pior era ver as minhas entranhas disseminadas pelo mundo. O meu tio falara-me com especial afeição de um pedaço de intestino levado por Francisco Mastrilli para as Filipinas. Um pedaço de S. Francisco Xavier adorado por todos. Tudo me arrepiava. Ao intestino davam maior importância. Eram as primeiras partes a apodrecer. Mas aquelas entranhas desafiavam a razão. Recusavam-se a perecer. Outros relatos causavam-me pior arrepio. As mulheres que tinham arrancado com a própria boca tiras de carne de um corpo morto há dezenas de anos. Pedaços de um santo que lambia as chagas dos leprosos ainda em Itália. Eu estava ali, como todos, Hindus e Cristãos unidos por uma devoção àquele corpo místico. Uma devoção necrófila. Procuravam o êxtase que o santo predilecto havia sentido.

A litania parecia interminável. Afastei-me para um pequeno passeio. O meu tio acompanhou-me pelas ruínas da cidade. Depois de passar o convento de Stª Catarina seguimos pelas ruas de outrora engolidas pela selva. Falei-lhe do meu desprezo pelos Holandeses e de como os Ingleses nos haviam traído. O despovoamento da cidade simbolizava o esplendor de tempos difíceis de imaginar. Esperava que o meu tio se sentisse impressionado com o que tinha aprendido no programa oficial de liceu. Irritou-se. Mandou-me calar. Regressámos em silêncio e quando voltámos a avistar a multidão interrompeu a marcha. Agarrou-me pelo pescoço junto à nuca.Fez-me olhar em frente.

-Aqueles são a verdadeira causa das ruínas que viste. Uma multidão de mestiços. Aqui somos todos descendentes de soldados corruptos cruzados com as piores castas do Concão.

Conheci desde sempre a história da família. Ainda hoje sinto um estranho orgulho de não ter sangue branco. De não sermos descendentes. Por vezes sentia que a minha família se transformava numa desordem difícil de entender. Crenças e revoltas ininteligíveis.
Regressámos em silêncio. Só voltaria àquele túmulo para rezar 33 anos depois. No dia 16 de Dezembro 1961. A cidade voltou a partir para pedir ao santo mais um milagre. O Santo resolveu nada fazer. Mesmo morto continuou a sua saga de milagres. A mostrar a mesma sensatez que quando percorria as ruas da cidade apelando à conversão. Apenas o culpo por ter escrito a D. João III a apelar à instauração da Inquisição em Goa. Tudo o resto lhe é desculpável. Afinal o que poderia ter feito?