quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Traição


Fui cedendo em coisas insignificantes. Tornaram-se maiores. Encontrava-me num equilíbrio frágil em que a minha vontade era aglutinada pela necessidade. A minha independência foi corrompida pela ambição. Não era a ambição mas uma força maior. Conduzia aos poucos a minha vontade para a grande marcha da comodidade, das pequenas pressões. Surgiu a incapacidade de dizer não.Começaram por me pedir a colaboração em pequenos planos de defesa, na elaboração de mapas e estradas secundárias. Todas as estradas eram secundárias, demorava uma eternidade em deslocações num território exíguo. Explicaram-me a natureza sigilosa do que fazia. Nunca manifestei qualquer interesse em falar do meu trabalho a ninguém. Nunca manifestei interesse pelo que fazia. Jamais me passou pela cabeça partilhar um conjunto de desinteresses com os demais. Não compreendi o ridículo da recomendação.
O Colaço era jovem e tinha dentes tortos. Era um excelente desenhador. Certo dia o Major Martins chamou-me ao seu gabinete. Havia fortes suspeitas de participação em reuniões. Os encontros daquela natureza estavam proibidos. O Colaço mais do que ninguém sabia disso. Costumava ficar sozinho no serviço a acabar pequenos trabalhos. A sua dedicação era exemplar. O Major perguntou-me se estava a par da delicadeza da situação.
- Compreende, trata-se de vigiar um colega. Pessoalmente não acredito em nada do que se diz, mas temos de ter confiança na idoneidade dos nossos alicerces. Acima de tudo quero que se investigue para remover qualquer suspeita.
O Colaço tinha muito trabalho e as horas extraordinárias no gabinete produziam os seus frutos. O trabalho aparecia feito. Nunca necessitei de lhe dizer nada. Detesto repreender pessoas. Mandaram-me estar atento a um colega…A família Colaço era acolhedora. Havia almoçado em sua casa por diversas ocasiões durante uns trabalhos próximos de Nuvem. Cheguei a pernoitar lá. Deram-me o melhor quarto. A sua mulher sentou-me à mesa de manhã e deu-me doce de Jaca acompanhado de leite de búfalo. O valor da hospitalidade tinha sido respeitado.
-Vi-o levar trabalho para casa. Eram pequenos mapas. Acho que não nos devemos preocupar. Nada de mais Sr. Major.
O Major mostrou-se preocupado. Pediu-me discrição absoluta. Explicou-me a gravidade da situação. A polícia andava a segui-lo. Tinham fortes suspeitas de ligação aos agitadores. Havia sido referenciado como potencial terrorista. Mas o Colaço não tinha nada de terrorista, era um homem pacato. Lembro-me de o ver fumar tranquilamente os seus cigarros no intervalo do serviço. À noite, durante o mês de Maio, parava num cruzeiro próximo de Campal e rezava o terço no memorial erguido pelas vitimas do naufrágio da embarcação proveniente da colónia de Adém. Confidenciou-me uma aflição peculiar pelas vítimas do mar. Rezava especialmente por elas, para que passassem o mínimo de purgatório.
-Ninguém merece morrer no mar. É belo demais para suportar a calamidade dos corpos flutuantes. É uma morte contra-natura. Não cabe ao homem conquistar todos os confins da Terra. Ele acaba sempre por devolvê-los às praias. Acho que se revistassem os cadáveres encontrariam um bilhete de Neptuno: “Não tive culpa. Não deveriam estar aqui”.

Contemplei o cadáver em silêncio. Rezei disfarçadamente o terço. Abracei a sua viúva e enxuguei-lhe as lágrimas. Demorei-me a sair.

- É uma tragédia para todos. Excelente camarada.

Mas aquele velório era uma consequência da minha inocência. Estávamos em guerra e só agora me apercebia disso. Bastaram umas palavras irreflectidas para provocar a morte. Fui eu que te matei meu bom amigo. Tive vontade de confessar a minha culpa. Sou um cobarde. Os colegas riam-se da tua beatice. Achavas que era o único que te compreendia. Comecei por ouvir na rádio a noticia da tua morte. Tinhas sido vítima de uma acção terrorista enquanto estavas na fronteira Leste. Era um grupo de infiltrados que te haviam assassinado. Mas naquele dia não tinhas ido para Leste. Estavas em Pangim, tal como eu.Os teus carrascos eram os colegas para quem trabalhavas com tanto apreço. Sou eu.
Aguardei a tua chegada ao cemitério. O féretro passou pelos portões de ferro e percebi que não tinha coragem de entrar. Senti a tua força a impedir-me a passagem. Convidaste-me tantas vezes para a tua casa e nesse dia barraste-me a entrada da tua última morada.