quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Mulher

A Rosu esperava-me na varanda. Acabava de chegar de uma missão na selva. Florida tinha conquistado o seu coração. Talvez tivesse sido ao contrário. A Rosu percebeu desde o primeiro momento o quanto ela era importante para mim . Entendeu a animosidade de toda a família, a minha revolta, o olhar perdido de Florida. Aos poucos, discretamente, introduziu-a na casa. Explicou-lhe o lugar de tudo e mais tarde tentou explicar-lhe o das pessoas. A Rosu nunca colocou uma máscara de autoridade . Limitava-se subtilmente a tecer breves considerações sobre as preferências de cada um. Explicou-lhe os momentos exactos de cada aproximação. Nunca deveria tentar nada quando tivessem todos juntos. Seria tudo muito mais difícil. Uma espécie de relutância. Um deleite mórbido em excluir.

- Bai gosta de tomar o seu brandy na sala depois de jantar. Não tente nada por aí. Aprenda a jogar eleven. Falta-lhe companhia para o jogo.
Não gosta que a vejam beber.

As expressões teimavam em endurecer-se quando falava. As conversas cessavam quando a viam. Por vezes, chegavam ao ponto de ir baixando progressivamente o tom até se calarem de vez à medida que se aproximava. Quando passava por casualidade num corredor da casa, desviavam-se subtilmente, faziam um pequeno compasso de espera e arrancavam a passo apressado.
Tudo isto a humilhava. Tentara esconder a sua percepção dos gestos desagradáveis. Ignorou as feridas, o inferno em que o seu mundo se transformara. Estava habituada à sumptuosidade da sua casa, às festas e ao piano por altas horas. Este universo taciturno deprimia-a. A comida era ridiculamente frugal. Não davam festas e recusavam os poucos convites que recebiam. Todo o dinheiro da sua nova família servia apenas a suprema causa da poupança.

- O seu sogro tem a vista cansada. Tem cada vez mais dificuldade em ler o jornal de uma ponta à outra. Tome-o por casualidade e partilhe em voz alta alguns artigos. Está sempre à procura de qualquer coisa nova. Mas o esforço que faz já não justifica as poucas noticias que vão deixando publicar por estes dias.

Sorriu ao ver-me regressar. Era o seu sobrinho secreto que voltava são e salvo. Agarrou-me o braço e puxou-me para um canto da casa. Pôs-me a par de tudo. O Ambiente estava cada vez pior. O casarão tornara-se demasiado pequeno. Não havia aproximação possível. Ao entrar no quarto olhei para o que restava de minha mulher e abracei-a ternamente . Há quatro semanas que estava fora e era demais para recém-casados . Os meus braços cercaram-na. Tentei restituir-lhe alguma vida. Quando a soltei prometi-lhe uma casa só para nós.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Traição


Fui cedendo em coisas insignificantes. Tornaram-se maiores. Encontrava-me num equilíbrio frágil em que a minha vontade era aglutinada pela necessidade. A minha independência foi corrompida pela ambição. Não era a ambição mas uma força maior. Conduzia aos poucos a minha vontade para a grande marcha da comodidade, das pequenas pressões. Surgiu a incapacidade de dizer não.Começaram por me pedir a colaboração em pequenos planos de defesa, na elaboração de mapas e estradas secundárias. Todas as estradas eram secundárias, demorava uma eternidade em deslocações num território exíguo. Explicaram-me a natureza sigilosa do que fazia. Nunca manifestei qualquer interesse em falar do meu trabalho a ninguém. Nunca manifestei interesse pelo que fazia. Jamais me passou pela cabeça partilhar um conjunto de desinteresses com os demais. Não compreendi o ridículo da recomendação.
O Colaço era jovem e tinha dentes tortos. Era um excelente desenhador. Certo dia o Major Martins chamou-me ao seu gabinete. Havia fortes suspeitas de participação em reuniões. Os encontros daquela natureza estavam proibidos. O Colaço mais do que ninguém sabia disso. Costumava ficar sozinho no serviço a acabar pequenos trabalhos. A sua dedicação era exemplar. O Major perguntou-me se estava a par da delicadeza da situação.
- Compreende, trata-se de vigiar um colega. Pessoalmente não acredito em nada do que se diz, mas temos de ter confiança na idoneidade dos nossos alicerces. Acima de tudo quero que se investigue para remover qualquer suspeita.
O Colaço tinha muito trabalho e as horas extraordinárias no gabinete produziam os seus frutos. O trabalho aparecia feito. Nunca necessitei de lhe dizer nada. Detesto repreender pessoas. Mandaram-me estar atento a um colega…A família Colaço era acolhedora. Havia almoçado em sua casa por diversas ocasiões durante uns trabalhos próximos de Nuvem. Cheguei a pernoitar lá. Deram-me o melhor quarto. A sua mulher sentou-me à mesa de manhã e deu-me doce de Jaca acompanhado de leite de búfalo. O valor da hospitalidade tinha sido respeitado.
-Vi-o levar trabalho para casa. Eram pequenos mapas. Acho que não nos devemos preocupar. Nada de mais Sr. Major.
O Major mostrou-se preocupado. Pediu-me discrição absoluta. Explicou-me a gravidade da situação. A polícia andava a segui-lo. Tinham fortes suspeitas de ligação aos agitadores. Havia sido referenciado como potencial terrorista. Mas o Colaço não tinha nada de terrorista, era um homem pacato. Lembro-me de o ver fumar tranquilamente os seus cigarros no intervalo do serviço. À noite, durante o mês de Maio, parava num cruzeiro próximo de Campal e rezava o terço no memorial erguido pelas vitimas do naufrágio da embarcação proveniente da colónia de Adém. Confidenciou-me uma aflição peculiar pelas vítimas do mar. Rezava especialmente por elas, para que passassem o mínimo de purgatório.
-Ninguém merece morrer no mar. É belo demais para suportar a calamidade dos corpos flutuantes. É uma morte contra-natura. Não cabe ao homem conquistar todos os confins da Terra. Ele acaba sempre por devolvê-los às praias. Acho que se revistassem os cadáveres encontrariam um bilhete de Neptuno: “Não tive culpa. Não deveriam estar aqui”.

Contemplei o cadáver em silêncio. Rezei disfarçadamente o terço. Abracei a sua viúva e enxuguei-lhe as lágrimas. Demorei-me a sair.

- É uma tragédia para todos. Excelente camarada.

Mas aquele velório era uma consequência da minha inocência. Estávamos em guerra e só agora me apercebia disso. Bastaram umas palavras irreflectidas para provocar a morte. Fui eu que te matei meu bom amigo. Tive vontade de confessar a minha culpa. Sou um cobarde. Os colegas riam-se da tua beatice. Achavas que era o único que te compreendia. Comecei por ouvir na rádio a noticia da tua morte. Tinhas sido vítima de uma acção terrorista enquanto estavas na fronteira Leste. Era um grupo de infiltrados que te haviam assassinado. Mas naquele dia não tinhas ido para Leste. Estavas em Pangim, tal como eu.Os teus carrascos eram os colegas para quem trabalhavas com tanto apreço. Sou eu.
Aguardei a tua chegada ao cemitério. O féretro passou pelos portões de ferro e percebi que não tinha coragem de entrar. Senti a tua força a impedir-me a passagem. Convidaste-me tantas vezes para a tua casa e nesse dia barraste-me a entrada da tua última morada.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

A febre

Estávamos em Julho. Regressava pelos campos de um passeio a D. Paula. A monção abatera-se impiedosa sobre Goa, inundando os campos. Os búfalos eram os únicos que pareciam divertir-se nos arrozais perante o brotar pujante de uma imensa colónia de mosquitos. Era a vida que ganhava terreno. Desafiava os homens. Ria-se da sua vontade perpétua de a domesticar. Em poucas semanas a natureza tinha varrido açudes, alagado cidades, levado pessoas. À medida que caminhava fui sentido uma ligeira fraqueza, depois uma tontura, até que o meu corpo sucumbiu febril. A estrada tornou-se mais extensa. Queria chegar a Panjim. Precisava de voltar para casa. Agora os búfalos flutuavam nas águas e pareciam querer barrar-me o caminho. Tudo demasiado rápido. Os seus olhos estavam vermelhos. Apercebi-me pela primeira vez do quão frágil era a minha existência. Procurei ajuda. De nada valia naquele momento toda a influência de meu pai. Recordo-me de ter vislumbrado um vulto. Parecia rir. Fui assaltado por um último pensamento enquanto perdia os sentidos: a doença faz-nos esquecer as diferenças. Reduz-nos a um espaço no qual todos somos irmãos.

Acordei na minha cama. Paulina sorriu. Disfarçou a inquietude.
Havia sido levado pelo guarda livro de um cliente de meu pai, que por milagre regressava de uma visita a uma prima, quando me descobriu na sombra de uma jaqueira.
Chamaram o Dr. Azevedo. Era um dos melhores médicos de Goa. Pegou-me na mão. Tinha um olhar apreensivo.
- É preciso baixar-lhe a febre.
Acho que voltei a perder a consciência. Paulina segurava a minha mão. Agarrava-a com a força de quem quer vencer a morte. Contraiu o rosto. Seria para mim ou para afastar a morte? Quando acordei ela ainda lá estava. Continuava a agarrar-me a mão.

- Recomendo que seja restringido o contacto. Deve evitar o contágio. Os medicamentos ajudá-lo-ão a passar a noite. Volto amanhã.


Olhou para mim como quem se despede de um condenado. Não me recordo de o Doutor ter voltado. Disseram-me que voltou. Saiu do quarto mais preocupado. Desconhecia o mal que me atacava. Era necessário hidratar-me, recomendou muita água de coco. Paulina levantou-me a cabeça, colocou o copo nos meus lábios e esperou pacientemente pelas minhas forças. Os dias seguiram-se, sempre iguais, pautados por períodos de consciência. Voltaram-me a dar água de coco.
As únicas pessoas que estavam autorizadas a entrar no quarto eram a minha mãe, o Dr. Azevedo e a Paulina. Mas Paulina não precisava de entrar. Não chegou a sair.
Os amigos de casa evitavam visitas. Sugeriram à minha mãe diferentes infusões, ervas, emplastros. Talvez fosse mau-olhado. O Dr. Azevedo irritou-se. Confiscou todos os frascos de mezinhas.
Vi o meu pai pela primeira vez nesses dias. Talvez já lá tivesse estado. Colocou-me a mão na testa. Depois passou-a pela testa de Paulina sob o pretexto de comparar a temperatura. Repousou a sua mão vagarosamente nos seus cabelos e chorou. Ela pediu-lhe para sair. Fiquei sozinho. Quando acordei estava a ser levado por Paulina e Rosu pela varanda da casa. Era de Noite Ao passar junto do quarto, perto da sala, vi na penumbra da porta semi-cerrada que toda a família estava ajoelhada em frente ao oratório. Era um oratório trabalhado de forma minuciosa, talvez por artífices hindus, que representava a sagrada família. O Menino olhou enternecido. O seu rosto era iluminado pelas velas. Estava longe. Rezavam o terço e não se aperceberam da minha saída.
Acordei numa casa hindu. Era a casa dos familiares de Rosu, para onde eu costumava fugir durante as festas do Ganesh. Era uma casa pobre, mas faziam questão de me empanturrar com os melhores doces. Era a festa mais importante do ano.
Permaneci de pé. Paulina segurava-me nas costas e uma pequena fogueira foi acesa por baixo do tecto de colme. Para minha surpresa Rosu pintou a testa e circulava à minha volta, de olhar ameaçador, agachando-se diversas vezes. Recitava um mantra imperceptível. Pegou numa malagueta verde e passou-a pela minha testa. Repetiu o mesmo gesto vezes sem conta e depois colocou a malagueta na fogueira. Pegou numa malagueta vermelha e reiniciou o ritual. Depositou-a no fogo e desta vez ouviu-se uma pequena explosão. Seria a morte a vir finalmente ao meu encontro?
Vim a saber, mais tarde, que a explosão se devia à raiva do mau-olhado ao ser queimado.

Recuperei milagrosamente da minha enfermidade. Nunca falei do sucedido a ninguém, pois bastaria uma palavra minha e a Rosu seria expulsa de casa. A minha mãe não tolerava bruxaria. Eu, tal como ela, nunca acreditei nesse tipo de coisas. Até hoje sinto que devo a minha vida à Rosu.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Despedida

O Congresso foi perdendo a sua chama. Os oportunistas chegaram, os idealistas do movimento de libertação foram perdendo o seu espaço, saíram aos poucos. Nerhu tinha criado a terceira via, um grupo de países não alinhados com nenhum dos dois blocos. Fomentou uma economia proteccionista, favorecia as empresas indianas, rodeou-se de jovens quadros. Jaya e o marido encontraram o seu espaço. Toda a sua dedicação deu origem à natural recompensa: num emprego em Nova Deli.
Despediu-se de mim no último ano do curso. A Índia precisava dela, não havia forma de virar as costas à luta, à construção da nação. Mas eu também precisava de ti. Se não tivesses ido alguém havia de te substituir, o país tem milhões de habitantes! Porque tiveste que ser tu a ir? O único sítio onde eras insubstituível era nas tardes em que faltava às aulas e ficávamos no meu quarto de estudante. O meu coração era o único lugar onde eras realmente necessária. Gostava principalmente da tua pele em Julho. A monção abatia-se sobre Puna, a terra ganhava outro cheiro e a tua pele colava-se à minha. Ao entardecer vestias-te e regressavas a casa. Não me levantava para despedidas, aquele momento era insuportável. Vivia-o todas as semanas enquanto o teu marido inspeccionava os quartéis do estado. Permanecia deitado, letárgico. Ficava a imaginar a melhor forma de subtrair esse asco das nossas vidas. Talvez se ele descobrisse a verdade te deixasse voluntariamente, mas já tinha dado todos os sinais àquele idiota e não havia maneira de ele desconfiar. Seria bom que te expulsasse de casa. Partiríamos juntos para Goa. Ninguém precisava de saber do teu passado. Baptizar-te-ia, casaríamos numa Igreja. Eras capaz de mudar de religião por mim? Eu fui. Nunca acreditei naquelas reuniões que me obrigaste a ir. Achava ridícula a forma como se vestiam, a forma como me passei a vestir, as minhas ideias políticas. Nunca foram minhas, eram convicções implantadas por força das circunstâncias, pela agressividade dos teus olhos. Depois fui-me modificando, absorvi todas aquelas doutrinas, passei a acreditar. Fazia-me falta a dinheiro da quota mensal entregue ao partido. Já naquele tempo desconfiava que a corja que assaltou o poder andava a enfartar-se com o meu dinheiro. Eram um bando de fundamentalistas hindus disfarçados de socialistas. Insuportáveis. Acreditei naquela gente ou fingi para mim mesmo? No fundo eram políticos. Se acreditei neles foi por que quis fazer parte do teu mundo. Sofro pelas coisas que disse ao meu pai nas férias. Ele não merecia, mas foi a única vez que tive coragem de o enfrentar, de lhe falar nos olhos. Quando regressei de canudo na mão lá estava ele no cais da segunda classe à espera. A carruagem da frente passou por ele, tentei acenar-lhe. Não me viu. Estava mergulhado numa resignação profunda, no tormento dos meus discursos. Depois viu-me de fato a descer mais adiante.
- É muito melhor viajar em primeira classe.
O meu pai sorriu. Nunca me perguntou a razão da minha metamorfose. Atribuiu-a um devaneio de juventude.
Jaya deixou-me por uma cargo qualquer. Se tivesse sido por outro homem, mesmo pelo marido parecer-me-ia legítimo. Compreendo que se ceda à força da paixão. Não entendo a tua sede de poder.
- Se algum dia for a Nova Deli sabe onde me encontrar. O nosso amor não tem espaço na vida. Não posso mudar a vida. É preferível abafar o amor. Se conseguir entender isto será mais fácil. Faço-o pelos dois.

Não encontrei paciência para tanta futilidade. Terá retirado aquelas palavras de um filme de Bollyhood?

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Sarapatel

Ficavas sentado no topo da mesa. Era-nos proibido falar durante a refeição. Ao mínimo barulho olhavas com ar severo e franzias o sobrolho. Ali ficavas toda a refeição na tua majestade de velho patriarca sentado à cabeceira em silêncio. Eu sentava-me à tua esquerda e a mãe à tua direita. As minhas irmãs nunca aceitaram a sua posição subalterna na mesa, a tua preferência por mim irritava-as. Acrescentavas-me sempre alguma injustiça no trato, um mimo que fazia crescer a inveja entre as minhas irmãs. Depois fechavas laconicamente a conversa:
- Afinal é o nosso morgado.
Iniciavas um esboço de um monólogo de frases curtas, incipientes, seria para conservares a distância da autoridade? Talvez fosse por nos considerares seres inferiores. Nunca nos achaste dignos de ti.
- Não seja indecente. Aperte o botão.
Mas havia tanto que gostaria que tivesses partilhado comigo, nunca conheci as tuas opiniões sobre nada. Por vezes lia um dos teus artigos no Heraldo e descobria uma sensibilidade enorme, uma pessoa empenhada no bem comum. Recordo-me de um desses artigos em que falavas do papel da música na formação das crianças ou o outro sobre o poder da oração e da fé. Apanhava-te sozinho e confrontava-te. Tentava encetar um diálogo enquanto segurava o jornal com a tua foto. Nunca me ensinaste nenhum instrumento, no entanto ouvi comentários sobre a forma como fazias o violino chorar. Deveriam referir-se a um passado longínquo. A uma face oculta que talvez partilhasses com os da tua espécie.
Não havia nada pior que as refeições. A sala era composta por janelas de madre pérola incrustadas em pequenas ripas de madeira. A luz atravessava as formações calcárias conferindo uma atmosfera inquietantemente calma. A criada interrompia a paz daquele sepulcro sussurrando pequenas perguntas em concani.
Nesse Domingo almoçamos todos juntos. Não. Obrigaste o meu filho a comer na cozinha. Irritavas-te com o desassossego do teu próprio neto. Também nunca gostaste da Florinda. Disseste no dia do nosso casamento que era naturalmente buçal. Foste tu um dos inventores do meu casamento, recordas-te? Passei esse dia como um actor à espera que o pano caísse. Fui eu que disse sim, mas não era eu que lá estava, eras tu. Nunca te odiei por isso. Ela faz-me feliz. Nesse dia tomaste uma decisão ainda mais polémica. Terminaste placidamente a sopa e enquanto a criada recolhia os pratos falaste. Poderias ter feito uma pequena introdução, uma breve explicação, mas não era o teu género.
- A partir de hoje passa-se a falar concani nesta casa. Estão proibidos de falar português à mesa.
Nunca reparaste que mais ninguém falava à mesa além de ti? E quando o fazias que importava a língua se o diálogo era inexistente?
Compreendeste a mudança. Preferiste antecipar o inevitável em vez de esperar que o destino te batesse à porta. Apoiei a tua decisão. Nunca te deste ao incómodo de saber o que pensava sobre o assunto.

A Rosu chegou com uma travessa de arroz branco e sarapatel. Não notou diferença alguma.



terça-feira, 22 de julho de 2008

Missa Dominical

Tinha o hábito de ir todos os Domingos à missa pela manhã. A comunidade Católica em Puna era muito reduzida. Algumas irmãs irlandesas, alguns indianos, muito poucos goeses. Nunca fui muito devoto, mas a Índia cataloga as pessoas por religião, casta, estatuto. Era a minha identidade, não havia forma de fugir, era a Índia. Nesse Domingo a missa decorreu sem imprevistos. O Padre era um Kerala, raquítico, progressista, cheio de ideias novas. Celebrava a missa descalço, na forma tradicional de os Hindus mostrarem respeito pelo templo. As suas homilias eram carregadas, com mensagens fortes de combate à pobreza, de tolerância religiosa, de respeito pelos valores da liberdade.
O evangelho era a leitura da mulher adúltera pronta ser apedrejada. Leu pausadamente, visivelmente emocionado pela sabedoria de Jesus. Um a um todos se retiraram.
Seguiu-se mais uma homilia forte, dirigida para a necessidade de perdoar, de dissecarmos a nossa consciência antes de julgarmos o próximo. A celebração sossegava as minhas saudades. A missa aproximava-se do fim e após a comunhão quando regressava piamente ao meu lugar, a minha expressão solene desvaneceu-se ao olhar para o banco detrás. Esperei-a à saída.
- Julgava-a Hindu.
- E eu católico a si. Não deve ter prestado muita atenção às leituras. Sabe foi a primeira vez que entrei numa igreja… Deve saber que sou casada? O Cristianismo é engraçado, é uma religião fácil. Seduz-me a noção de pecado e perdão. Não me revejo nos padres mas a religião é engraçada. Porque decidiu aparecer na conferência? A minha religião não é puritana como a sua. Conseguiriam mais fiéis se ornamentassem as igrejas com a voluptuosidade dos nossos templos. Sem reprodução também desapareceriam.

Mas tu já estavas perdoada antes de pecar. Ninguém te apedrejaria. Há uma pureza no teu rosto. Deus compadece-se de seres como tu. Foste visitar a sua casa para me veres, sabias que ali também era o meu lugar. Não devias ter vindo ao meu encontro Jaya.

Cadeira de Vime

O meu filho mudou. Não digo que já não seja meu filho, mas custa-me reconhecer o homem que vi partir. Esperei na estação, no cais mais próximo da saída destinado aos passageiros da primeira classe, mas ele não apareceu. Todos os anos vinha pela altura das férias passar um temporada a casa, ia para o último ano do curso e aqueles dias eram para mim os melhores do ano. Depois reconheci um vulto ao longe, todo vestido de algodão branco, com um poreem, vindo do cais da segunda classe. A mesada era sobejamente suficiente, não compreendia, e havia uma inquietude no olhar, um orgulho insano estampado no rosto. Herdara os meus olhos verdes, a minha altivez no andar, sempre o ensinei a caminhar na rua com as costas direitas, - Pensa que és uma pessoa realmente importante – Mas ele sempre se sentira realmente importante não era preciso dizê-lo. Mas agora era eu quem estava de ombros caídos. Não me deu explicações. Começou a falar da União Indiana, da necessidade de se abolir as castas, de transformar a Índia, de os indianos vestirem tecidos nacionais. Disse-me que a saída dos Portugueses era uma inevitabilidade. Mandei-o mudar de assunto, mas ele insistia em falar dos progressos económicos, de uma nação que desabrochava para a modernidade. Pelo caminho continuei a ser lapidado por uma doutrina que não era nova, mas que não esperava ouvi-la do meu próprio filho, não era para isto que o andava a sustentar em Puna.
Ao chegar a casa sentou-se com as pernas cruzadas em cima do tampo de vime na velha cadeira da sala, posição que manteve em todos os convívios daquele ano. Assumia ares de asceta Hindu. Olhar distante. O tampo acabou por se romper e os empalhadores custavam uma fortuna. Consolou-me dizendo que aquele estilo nada tinha de Marastra, tratando-se de mais um luxo ocidental, uma herança de um colonialismo barroco que já se despedira à muito do seu esplendor. Agora o futuro pertencia a nós indianos. Será que me estaria a incluir nessa enorme família?
Afastei-me da sala por temer os infindáveis discursos que me tinham torturado quando regressava da estação. Sentia uma falta de autoridade e todas as tentativas de restituir a minha posição na casa afastavam-me do meu filho.
Numa manhã enquanto inspeccionava o avanço dos trabalhos nas minhas propriedades reparei que os manducares já não se levantavam à minha passagem, hábito que sempre insisti que mantivessem, não por capricho estético, mas por necessidade de conservar o equilíbrio natural das coisas. Os manducares viviam nas nossas terras. Trabalhavam e retiravam da terra o seu sustento. Havia certamente abusos tal como no Alentejo com os rendeiros. Eles eram os primeiros habitantes de Goa. Falavam um concani puro, mais correcto que o dos católicos, sem estrangeirismos.
No dia seguinte pedi ao capataz para se apresentar no alpendre da nossa casa. Descobri que o meu filho tinha organizado diversas palestras, junto dos trabalhadores, onde os instruíra para a Índia Moderna.
O capataz vira-se proibido de praticar qualquer resquício de feudalismo, palavra que não entendeu e aproveitava a oportunidade para me pedir explicações sobre o tipo de conduta a adoptar no futuro.
As férias chegavam ao fim e pelo menos por um ano conseguiria adiar o meu pesadelo. Demorei algum tempo para resgatar a normalidade, mas por fim, consegui reorganizar a estrutura da casa. Entre mim e o meu filho havia algo que estava irremediavelmente perdido.

Fui despedir-me do meu filho à estação e ao regressar aliviado a casa deparei-me com uma inscrição na parede do estábulo contíguo à casa: “A terra é de quem a rega com o suor do seu rosto”. Era a letra do meu filho.

Emancipação

Puna adquirira um esplendor novo. As ruas foram limpas, enfeitou-se as casas, preparou-se a festa. O primeiro aniversário da independência deveria ser celebrado com pompa e circunstância. Um dia de união nacional, de exaltação do espírito patriótico, porque um país também se constrói com fanfarras e sessões solenes.
Cinco homens afixavam vagarosamente cartazes na rua, um a um, demorando a tarde a percorrer a avenida . Anunciava uma conferência: “Maharshi Karve - contributes for women emancipation”. Fazia parte de um ciclo de conferências organizado por antigos membros do movimento de libertação. Inseriam-se nas comemorações. Entre os oradores destacava-se um nome que permanecera latente na minha memória no último ano. Decidi ir. A sala estava cheia, um calor sufocante e uma voz sobressaía ao compasso da trepidação das ventoinhas do tecto - Eras o único ponto de interesse na sala, o meu pequeno oásis - Jaya estava mais bonita que há um ano. Usava um sari preto, uma trança apanhada, uma voz empolgante. Fixaste o teu olhar quando entrei e a tua voz oscilou para logo a seguir retomares, como dantes, cristalina, indiferente à minha chegada. Foi a tua maneira de me chamares, de me dizeres que aguardavas a minha chegada com a pontualidade de um encontro.
Mas depois de ti havia mais oradores, um sem-fim de palavras, palmas, novos discursos que recomeçavam e acabavam na minha irritação. Na primeira fila do auditório lá estava o teu marido a aplaudir, delirante, com os seus dentes amarelos (estavam mais tortos). Já te disse que o odiei esse pulha mesmo antes de o conhecer?
Seguiu-se um pequeno beberete, esperei que estivesses só, mas os panegíricos não te largavam. Devo ter sido o único que não prestou atenção ao que dizias. Só a ti. Agora conseguia sentir o teu cheiro. Deves ter discursado bem, ninguém parecia querer libertar o teu espaço. Aproximei-me.
- Não sabia que se interessava pelos direitos das mulheres na Índia.
Nunca me interessei. Não entendo porque conduzes a conversa para um assunto do qual nada entendo. Não podemos voltar a falar da vida, de ti? Pediste-me um minuto, retiraste-te, esperei. Deixaste-me só na sala.

Zuari

A minha formação é em agronomia, mas talvez me tenha formado na arte de pensar, se é que existe alguma. Penso que talvez tenha mentido para arranjar emprego. Acho legítimo. Um homem não de define pelo que faz mas pelo que é. Não suporto quando me tratam por engenheiro. Não sou o Sr. Engenheiro. Há uma identidade em mim, um Eu que tem um nome, superior ao que faço. Pouco me diz aquilo que faço ou o nome da minha família - Purificação Menezes - quem se lembraria de pôr purificação a um ser iníquo? Mas eu era o Sr. Engenheiro era nisso que me tinha tornado

- Sr. Engenheiro os rios são estradas. É fácil defendê-los a partir da foz é isso que sempre se fez. Sempre tentaram atacar-nos a partir daí. É de lá que virá o perigo.

Mas não estou interessado em defender rios. A pertencerem a alguém deveria ser ao mar, é para lá que marcham desde o princípio dos tempos. Agora constrói-se barragens e esvazia-se o mar, este não reclama, não tem títulos.
Mandaram-me fazer o estudo da bacia hidrográfica do Zuari . É importante estudar a sua navegabilidade e o seu assoreamento para que os barcos possam ir cada vez mais longe buscar o tão precioso ferro. A indústria não pára de se expandir e todos os dias vêem-se sair barcaças de minério. É um pedaço de Goa que é vendido para se transformar num parafuso.
Temo que quando terminar este trabalho me darão outro rio e não faltam rios em Goa.

Ainda me recordo de ser Agrónomo? Não entendo nada de agrimensura e menti-lhes ao dizer que tinha formação na área. Alguém terá confundido Agronomia com Agrimensura. Talvez me tenha enganado propositadamente ou talvez esteja a ser engolido por uma fatalidade do destino.
Mas o que faço prevalece sobre mim e vejo-me forçado a comparecer todos os dias no trabalho, a ir a toda a espécie de reuniões. Discute-se e ninguém considera a hipótese de estar de passagem, de ser um peão na ironia da história.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Pangim

O regresso faz-nos renascer. Espera-se que nos seja restituída uma parte de nós que não viveu. Tenta-se apanhar um comboio em andamento. Voltar à velha casa é como recuar à meninice. Depois descobre-se que o tempo não esperou por nós. As diferenças vão-nos provocando pequenas moças. Quem autorizou o meu pai a cortar a mangueira? Quando posso voltar a trepar e abocanhar o suco amarelo, ter o prazer de saborear nas minhas próprias mãos as mangas Hilário…Agora já não te consigo ouvir - Desce imediatamente espécie de saguim! - Disseste que estava a cair em cima do telhado, mas a árvore era minha, foi de lá que caí, era ali que me puxavam as orelhas quando descia. Espero encontrar a minha mangueira em cada retorno para descobrir o que tu a mandaste remover da minha vida. Encontro o sufoco de tudo o que não esperava encontrar. Porque não quiseram esperar por mim? Deixo de pertencer. As velhas caras saúdam-me com distância, ter-me-ão visto na véspera? Por que não fizeram uma festa de boas-vindas, não organizaram nada. Estive longe, sofri, esperava a solidariedade da minha gente.
Um carro buzinou enquanto subia ao Altinho. Não olho. Não estou habituado a que me saúdem na rua. A parte de mim que andava na rua em Puna dissolvia-se na multidão. Havia o doce refúgio do anonimato.
-Olá Sr. Engenheiro!
Será que me vão continuar a proibir de subir ás árvores? Está a falar comigo. Tenho uma entrevista marcada no palácio do governador. Fala-me de grandes projectos de desenvolvimento, da exploração do minério, da necessidade de cartografar, de construir estradas.
- O seu pai falou-me do seu empenho. Notas fantásticas. Agora já sabe, Sr. Engenheiro, temos um império para desenvolver. A Pátria precisa de homens qualificados. Amanhã pelas nove horas, está bom para si?
O meu pai omitiu alguns detalhes. Deve-se ter esquecido de lhe dizer que mandou cortar a minha mangueira. A filha da casa que me criou não esperou por mim para morrer. Era a minha mãe. Paulina fora abandonada numa manhã à porta de nossa casa. Acabou por se tornar minha ama. Nunca casou. Era filha bastarda de um a amigo de meu pai. Era filha de uma relação fortuita. Os amigos trocavam favores entre si e as crianças eram abandonadas numa permuta previamente acordada. Foi a verdadeira mãe que conheci, bastava ter-lhe dito adeus. Devia lá ter estado para lhe segurar a mão no derradeiro momento. Era ali que estava a minha Pátria.

Locomotiva a vapor


Regresso a casa devagar. Guardo a tua imagem como um breve contacto entre dois mundos que nunca se deveriam ter cruzado. A tua face penetra-me. Perturba-me ao ritmo da trepidação da locomotiva. Tento encontrar argumentos para te culpar a ti, aos ingleses, aos nacionalistas, ao teu marido…desenvolvi-lhe um ódio visceral, notaste? Como podes não sentir nojo de dividir a vida dessa maneira? Quando entrei na tua sala vi uma fotografia a preto e branco. Estavas com toda a tua beleza condensada prestes a eclodir. Os anos de casamento amadureceram-te. Estás mais bela. Depois um enorme contraste, uma dor lacerante, aquela presença desagradável. Um horror. Detesto vê-lo assim a partilhar a tua felicidade, a sorrir para a eternidade. O diafragma dessa máquina diabólica deveria ter-se fechado só contigo, diáfana a receber as sombras do entardecer; um contraste perfeito. É assim que te vou recordar nesse instante, sem nunca lá ter estado, nesse instante que não chegou a acontecer.
Volto agrónomo e apaixonado. O meu pai fez contactos para um emprego e um casamento. Aguardam-me várias propostas. Não sinto vontade de iniciar trabalho algum e muito menos arrumar a minha vida. Ouvi rumores de uma rapariga de Velim de boas famílias, trará consigo um bom dote. Parece que abriu uma vaga de agrimensor . Os portugueses finalmente se interessam pela orografia do nosso estado. Também os odeio tal como a mim. Tentarei iludir o meu destino, escapar à censura de meu pai. Mas o ódio entorpece-me o discernimento, turva-me o raciocínio como a certeza de uma bebedeira.

Elegi-te na multidão para seres o objecto, o reflexo de um ser que se ocultava em mim. Este é o meu anátema, o meu abismo sentimental.

Puna


Foi-me apresentada pelo marido. Não me consigo recordar da casa onde tinha lugar a recepção. Era um cocktail onde se encontravam muitos europeus, essencialmente Ingleses. A maioria era militares acantonados em Puna. Havia na sala alguns indianos, filhos da elite local, sobretudo burgueses que haviam enriquecido no comércio com o Império.
Todos eram estranhos naquela sala, onde o único elo comum era o sentimento de não pertença a coisa alguma. Para mim, esse era o género de sentimento que tinha experimentado toda a vida e talvez por isso me sentisse mais à vontade.
O marido era bastante mais velho e de fraca figura. Fui tomado por europeu, devido à minha tez clara e aos meus olhos azuis.
Os meus olhos fixaram-se nos seus e decidi apaixonar-me. Não sou hipócrita para dizer que foi o destino ou o impulso do coração. Decidi por uma relação baseada numa figura agradável que aparecia diante de mim.
Encetou um diálogo pouco interessante e sem que nada o fizesse prever começou a revelar-se. Partilhou fragmentos da sua existência, gostos, estilos, modos de estar. Falou-me de poesia e da sua paixão por Tagore. Era para ela um símbolo, o sonho de uma Índia emancipada, falava abertamente dos seus ideais e sem que se apercebesse recitei-lhe lentamente:
“Peço por um momento de indulgência para me sentar ao teu lado. Os trabalhos que tenho entre mãos terminá-los-ei depois.”
. Sorriu. Se continuasse tê-la-ia ofendido?
Aceitou espantosamente o meu convite e sentámo-nos no alpendre, no exterior da casa colonial. Preparava-me para declamar: “ O meu coração não tolera o repouso fora do vislumbre do teu rosto”, quando colocou um cigarro na minha boca e acendeu docemente. Engasguei-me. Contemplou-me e viu um jovem universitário. Assumiu um porte altivo, tirou-me o cigarro da boca e saiu vagarosamente a fumar. Um momento antes de regressar à sala voltou-se:
- Espero que conclua os seus estudos com distinção
.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

A Fome

Os cinco homens envergavam um uniforme caqui, de atavio disparo, tinham um aspecto famélico e eram escuros. Pareciam ter receio de importunar a paz da casa, assumindo uma atitude subserviente, o que era irónica para um invasor. A palavra “uniforme” talvez tivesse uma aplicação abusiva, era tudo menos isso. Por felicidade do destino, porque mesmo no infortúnio existem factores de alegria, um deles falava Inglês. O Inglês era a única língua que os filhos da Mãe Índia encontraram para se entenderem. Foi quanto bastou para esclarecer as suas intenções: tinham fome. A fome provocada por uma crise económica que avassalava a Índia. Foi a crise que levou à Invasão numa tentativa de desviar as atenções para o problema real da Índia. Sempre a fome, provocada por um sub-continente sobrepovoado, por um tecido produtivo e industrial devastado pelo colonialismo Inglês, que anulava toda a iniciativa transformadora na indústria e na agricultura.
Mahatma Gandhi tinha falado do respeito pela dignidade humana, do valor da resistência pacífica, educou um povo para os valores mais elevados de Deus e dos Homens. Mas os valores do Mundo são diferentes dos do Faquir de panos como Winston Churchill lhe chamou.
Poderias tu, meu querido faquir, ter conduzido o Mundo com a tua fragilidade física, embainhando exclusivamente a eloquência da tua sabedoria? Será que o teu espírito não sucumbiria também ao poder do poder? A essa força que arrasta todos os homens bem intencionados para a corrupção do corpo e da alma? O teu discípulo mais fiel, Jawaharlal Nehru, que sofreu como tu o jugo imperialista veste agora a pele do lobo.
Descobriu a paixão da subjugação. Descobriu que é mais fácil oprimir que libertar, mas a sua grandeza perdeu-se para sempre nos corações dos que sofrem. Deves ter-te sentido osculado na face por Judas no Jardim das Oliveiras. No fundo é o teu discípulo que te trai. Mas a tua grandeza será sempre messiânica, protegeste-te da mácula do poder saindo de cena. E agora que devo fazer com estes soldados a invadir-me a casa?
Recusaram o dinheiro que lhes ofereci. Limitaram-se a dizer que tinham fome e confiscaram-nos a colheita de arroz. Regressarão amanhã com um veículo apropriado. Esperarei estoicamente o salteador e darei ordens para que ajudem a carregar o arroz. No fundo são homens com fome.

terça-feira, 15 de julho de 2008

A Carta


Recebi uma carta. A letra é do meu filho. Há uma alegria enorme em saber que no Universo alguém se lembra de nós. Depois vem o resto. Gostava de entrar naquela caligrafia, dentro do envelope e ser despachado para junto do meu filho. Não. Queria era que o meu filho fosse despachado em vez da carta. É aqui o lugar dele.
Já não sei onde é a morada de um homem que ficou sem país. Precisará de visto para voltar à sua própria casa? O caminho da diáspora é de sentido único. A esperança de um regresso ilude a realidade. Agarramo-nos com força ao que queremos acreditar, vivemos em função disso e somos felizes. Pensamos que enganamos os outros com a nossa felicidade, mas não nos enganamos a nós próprios. Depois a realidade é cruel, faz-nos sentir em cada dia o peso da razão. Transforma-se no escárnio da nossa consciência.
Esperava encontrar-me bem… Como poderia estar bem? Depois continuava a falar de grandes projectos para Angola, no contributo que dava nas fazendas de café, na plantação de cajus, na dominação de uma praga de gafanhotos. Deve ser difícil exterminar gafanhotos. Creio que o nosso mundo também está a caminhar lentamente para o extermínio. Nós somos poucos, e a única coisa que nos une é sentimento de fracção que nos percorre as veias. Terão sido os Portugueses a disseminá-lo para nos subjugar ou fará já parte da nossa natureza?

Bombaim


Numa ocasião fui visitar a minha filha a Bombaim. Enquanto caminhava pareceu-me reconhecer um conjunto imperceptível de fonemas soltos. Reconheci a língua não pelo que diziam, mas por uma matriz fonética audível a milhas. Estava numa praça, a uns escassos metros do Gate of Índia. As vozes transportaram-me para o bulício da minha casa de encontros, em Taleigão. Estava com os meus colegas do Afonso de Albuquerque, as velhas tábuas de ardósia em cima da mesa, e bebíamos uma Urraca suave. Aguardávamos as raparigas que passavam em fila pelo arrozal. Apenas víamos as silhuetas adelgaçadas por saris multicolores. Era quanto bastava para se acender uma tocha nos nossos corpos imberbes.
Os mais velhos diziam-nos que aqueles encontros preparavam-nos para o casamento, mas eu guardava sempre uma inquietude, um temor pelas labaredas do inferno que a minha vida pecaminosa me reservaria.
Era português sem sombra de dúvida. Agora tinha a certeza. Foi bom ter regressado a casa por breves instantes. Esta cidade está a tornar-se sufocante. A língua reconhece-nos, toca o nosso coração onde quer que nos encontremos. Selecciona-nos na multidão, faz-nos sentir em casa para dolorosamente nos restituir a lassidão da distância.
O calor derretia lentamente o meu corpo, o fumo dos carros colava-se ao suor, pequenos mendigos puxavam a minha roupa no desespero da miséria. Lembro-me que naquela altura pensei se um dia Goa poderia vir a ser assim. Afastei do meu pensamento tais divagações. Os povos caminham lentamente para a liberdade em todo o Mundo - Por que haveria de ser assim?

Primeiro Encontro


Os cinco homens caminhavam em fila pelo socalco que dividia o arrozal. O verde intenso permitia identificar as fardas a uma distância que se ia encurtando à medida que angústia invadia os espíritos. O contacto com o desconhecido sempre foi sinónimo de medo. O medo é absurdo, teme-se e não se encontra uma razão que acalme os corações. A lógica é habitada pelo monstro do medo.
De todos os encontros ocorridos na história não foi a diferença que provocou as carnificinas. Foi o medo da diferença.
O tempo transforma-se em eternidade para todos os que esperam. Contam-se os minutos de alegria de uma mãe que está de esperanças e contaram-se os momentos de tormento para os homens da casa.
Os fracos sabem que quando ousam resistir são massacrados mais depressa do que quando consentem ceder ao lento massacre da integração. Foi por essa razão que os Judeus decidiram esperar na Alemanha e dez milhões de índios forma sistematicamente aniquilados na América do Norte.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Narrador

Há duas realidades dolorosas: a do ser que aspira a qualquer coisa e a outra, do mundo do sofá, do comodismo de um televisor. Por vezes, entretenho-me a fazer zapping e passado um intervalo, que não senti passar, não me recordo de coisa alguma. Existe também o outro, que se coloca num plano prático. Ambiciona uma grande descoberta, qualquer coisa que se destaque e escape a uma mediocridade obsoleta tão fatal como a previsibilidade dos Homens