segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Corona Zephyr

A letra do meu pai era deselegante. As palavras iniciavam-se e terminavam em tamanhos diferentes, como se o fim de cada frase tendesse a extinguir-se. A sua personalidade, que parecia forte, projectava-se numa caligrafia irregular e envergonhada. Redigir qualquer texto, por mais pequeno que fosse, provocava-lhe embaraços. Com o advento das máquinas de escrever as mãos aliviaram-se da vergonha. As letras passaram a ser batidas com convicção e os próprios textos ganharam outra coragem. No início enervava-se por cada erro que implicava repetir a página. Com o tempo deixou de se enervar e passou a trabalhar até altas horas. Acostumei-me a escutar no quarto cada batimento das teclas da sua velha Herme Baby que mandara vir da Suiça. Escrevia num ritmo frenético, como se cada texto que publicava já estivesse há muito “batido” na sua cabeça. As frases eram pautadas por breves silêncios, nos quais me assaltava uma falsa esperança de ter chegado ao fim. Depois recomeçava e as palavras regurgitavam um novo ânimo. O silêncio da noite era de novo interrompido e ninguém dormia, nem tão pouco se lamentava. A inspiração surgia-lhe a altas horas da madrugada e apenas os cães se queixavam. Durante os primeiros tempos atreveram-se a ladrar, mas aprenderam a suportar o barulho através da terapia do pontapé. Os criados da casa, que se levantavam cedo, temiam a mesma sorte. Ninguém esboçava o mais leve protesto. A minha letra, embora não fosse bonita, tinha personalidade. Era uma caligrafia áspera,ligeiramente inclinada, a acompanhar a impaciência da juventude. No dia em que terminei o liceu, por gostar de mim ou talvez por inveja do meu pulso firme, recebi uma máquina de escrever. Era uma Corona Zephyr e tornou-se a minha cara-metade. Aprendi a percorrer as ruas de Pangim, com uma mão no guiador e a outra a segurar religiosamente a máquina amarrada na traseira de uma velha bicicleta. No dia em que parti para Puna, recordo-me da forma como o meu pai se despediu de mim. Abraçou-me de forma inesperada e na eternidade daquele momento fiquei a contemplar a máquina nas suas costas pendurada na minha mão… Corona Zephyr. Não sei o que senti, mas limitei-me a ler aquelas palavras, sem sentido, na caixa da máquina enquanto os seus braços me prendiam. Quando abraçamos alguém há um instante de privacidade no momento em que o nosso rosto desaparece. Depois o comboio apitou. A máquina tornou-se pesada e o meu braço soltou-se. Voltou a debruçar os olhos imperativos no meu rosto e talvez se tenha apercebido que os meus olhos nunca se fecharam para saborear aquele momento. Era o fim de uma intimidade concedida por breves instantes: “Volta com um capital intelectual que providencie o teu próprio sustento. É a tua única garantia para a vida.”
A máquina acompanhou-me ao longo do curso e em todas as viagens de regresso a casa. Só aquele momento morreu para sempre. Nos dias que se seguiram à invasão o meu gabinete foi saqueado. Depois da minha prisão não voltei a encontrar a máquina que tinha o terrível defeito de prender o “O” no “L”. Jaya divertia-se a perguntar quem seria esse ser misterioso que assinava por “lve”.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Ausências

Quando me afastei de casa voltei a sentir a liberdade do descomprometimento. Temia que no regresso entendesses o meu olhar distante. A fraqueza de quem esteve ausente nas nossas alegrias: o aniversário de casamento, primeiro filho, novos aniversários. O trabalho parecia chamar-me nas piores alturas. A culpa perseguia-me até ao abraço da chegada. Ao passar a soleira da porta reconhecia um rosto de ansiedade. O teu cheiro pairava no ar: o cheiro da nossa casa. Impregnava-se porque começava a ser cada vez mais nossa, embora só o teu se notasse Talvez tivesse o meu, das curtas passagens, mas não o conseguia sentir, porque era meu e apenas me reconhecia em ti. O melhor abraço que recebia era o do regresso. Parecia durar uma eternidade. Eras sempre tu que me largavas. A tua estabilidade e coração mantiveram-me vivo. Em cada regresso tornava-se mais evidente porque me fazias tanta falta. Preciso de ti porque te amo. Nas minhas pequenas orações peço a Deus que me chame primeiro e agradeço-lhe o maior dom que colocou na minha vida.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Pondá

No dia dos meus anos a minha mãe fazia questão de ser a primeira a acordar-me. Sentia-me feliz por apenas ter nascido às oito horas da manhã e não mais cedo. Entrava à hora exacta e abraçava-me num despertar rabugento. Dizia querer passar aquela hora comigo enquanto andasse por cá. Acho que era o único acontecimento em que pautava pela pontualidade. Todos os outros constituíam um martírio de esperas intermináveis. Numa madrugada em Pondá eu ansiava por ter nascido mais cedo. Por voltar a recebê-la no meu quarto no dia dos meus anos. Passara a noite em claro, atormentado pelos percevejos que entravam na minha boca, ouvidos e narinas sempre que adormecia. Os dias no campo de prisioneiros eram passados num sufoco tórrido, rodeado de arame farpado e desespero. À noite, quando a temperatura prometia arrefecer, eram os mosquitos que se banqueteavam nos meus pulsos, nós dos dedos, tornozelos e pescoço. Todo o meu corpo exposto inchava. Impediam-me de pensar. Mesmo nos momentos de tréguas sentia picadas imaginárias que me faziam esbofetear as pernas e a cara na esperança de me vingar. As latrinas resumiam-se a um buraco aberto na proximidade do campo. Os dejectos aqueciam e ferviam durante o dia empastelando toda a atmosfera. Em Março de 62 eu estava fraco e não conseguia pensar. Sabia que não devia estar ali. Por qualquer razão oculta todos se recusavam a entender-me. Deixei-me dominar pelo desespero. A insanidade apoderou-se de mim. Entendi que não tinha estofo para morrer nem sobreviver naquelas condições. Desenvolvi um ódio surdo por todos. Nas noites que eram longas o meu corpo recusava-se a adormecer. Apenas gritava. Primeiro educadamente, uma tosse, um comentário fora de horas. Depois passei a grunhir gritos de desespero, até que os camaradas acordavam e insultavam-me. Em Março passaram a bater-me até me calar. Deixei de gritar. Na madrugada dos meus anos eu não conseguia dormir. Consolava-me a demência que tornara o tempo imperceptível. Era o meu dia de aniversário. Sabia-o sem ter a consciência do tempo que deixei de contar, mas por ter sentido um beijo terno na face instantes antes de tentar adormecer. Disse-me “até amanhã!” e eu reconheci a minha mãe, porque fazia anos, e ela lembrou-se de mim. Combinou comigo como em todas as manhãs da minha infância e deu-me um beijo para que não esquecesse que daí a pouco seriam oito horas. Mas o tempo tinha deixado de passar e eu prometera-lhe que ia para casa. Na véspera ouvira uma conversa entre dois camaradas que me odiavam por gritar de noite e cheirar a fezes. Combinavam fugir misturados com o lixo da manhã. Supliquei que me levassem. Prometi-lhes abrigo e comida nas melhores casas de Goa. Seria o seu sustento enquanto estivéssemos a monte.
Os bastardos riram-se de mim – És um cadáver demasiado pesado…- Talvez não o tivessem dito, mas pensaram, porque eu não tinha forças para fugir nem para lhes bater. Depois saíram deixando-me na expectativa. Fazia anos, ou pelo menos estava convencido do meu aniversário. Pensei apanhá-los no último momento. Nessa altura seria demasiado tarde para me abandonarem.Dirigi-me para as traseiras da camarata e fiquei à espera da manhã. Os prisioneiros começaram a sair lentamente para o pátio. As latrinas encheram-se. O ar voltou a ficar nauseabundo, o calor voltou a sufocar-me com os raios da manhã. Vi-os introduzirem-se na carroça do lixo e a passarem ocultos a porta de armas. Aí o meu desespero aumentou. Lembrei-me que não podia ir para casa porque estava preso; a minha mãe já não me esperava porque tinha morrido há sete anos. O pior do ser humano manifestou-se numa atitude de revolta que era só minha e a voz explodiu – Gritei e dei o alerta em Português, Hindi, Inglês, Marati e todas as línguas que a Mãe Índia me obrigara a aprender. Eu odiava aquela Mãe porque todos os camaradas me sovavam, espancavam e eu nada fazia para me defender. Tinha-me esquecido da morte da minha mãe. A sua ausência pesava-me como um novo luto. Não tinha forças e não queria morrer. E aqueles porcos que não me quiseram levar e foram denunciados, viram os seus corpos dilacerados pelos bambus dos guardas do campo. Isto fez aumentar o ódio de todos por mim. Os guardas intervieram. Fui separado dos restantes prisioneiros. Até os guardas do campo passaram a nutrir o desprezo que se deve ter pelos delatores.
Acabei por receber o tratamento médico por que tanto esperara e não voltei a ser misturado com os prisioneiros. O médico pessoal do Brigadeiro Sagat Singh deu-me, por cortesia, uma injecção de morfina que me fez adormecer. Nesse instante senti o calor dos lábios da minha mãe na testa e escutei a sua voz: “Feliz Aniversário”.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Mandi

Perscrutar o passado constitui uma das actividades mais nobres de qualquer Estado ou Homem. A excepção aparece quando nos olhamos. Para trás fica uma deambulação pela inconsciência perdida do que deveria ter sido e hoje me envergonho. Revejo-me como o mesmo que se decidiu partir; a vergonha apenas me consola por saber que mudei. A prova é o meu embaraço. Pesa-ma olhar para os meus filhos e pensar no pai que poderiam ter tido, a terra que lhes prometi e tudo o que me resolvi subtrair às suas vidas.
A pior das ilusões é esperar que eles possam cumprir o meu destino. Que regressem a um sítio que nunca foi seu e ocupem o lugar vazio na mesa, junto à varanda, onde me sentava. A mesa é maciça e o meu pai já não se senta à cabeceira. Os vidros eram em Mendi, uma espécie de casca de ostra incrustada em balaústres de madeira. A luz tornava-se suave e discreta ao passar nas conchas translúcidas. As janelas abriam de manhã e ouviam-se os ecos de uma mata quase selvagem. As gralhas exaltavam-me a sair do quarto e preenchiam o início do meu dia. Nunca me acostumei aos outros despertares. Ao ruído de um rádio, o ronco de um automóvel. Talvez seja um pretexto para me levantar tarde. Recusar-me a sair da cama. No princípio tinha a justificação do exemplo da casa. De acordar os filhos e obrigá-los a serem saudáveis. Quando chegou a altura de escolher o nome do primogénito tive de optar. Por um lado gostaria de lhes deixar um baptismo de Goa. Os nomes da família eram de origem portuguesa e havia a questão da integração. As crianças são cruéis e lidam mal com as diferenças. Os nomes hindus seriam imperceptíveis. Talvez para o segundo pudesse optar por um nome mais genuíno. Os filhos foram nascendo e os nomes adequaram-se ao costume. Se tivesse escolhido um nome diferente para o último pareceria adoptado. Faltam-me os motivos para me levantar da cama. Vivo num apartamento esquecido na outrora metrópole. O leite de búfalo que outrora bebia na mesa de madeira foi substituído por um cocktail de medicamentos. O médico diz-me que é para poder ter uma vida normal. Na última consulta pensei em contar-lhe que já estive doente e os médicos nada puderam fazer. Valeu-me a Rosu que deverá ter apelado a Hanuman ou à própria Shiva. Gostaria de lhe falar um pouco da minha vida e das saudades que tenho das janelas, do leite de coco, das gralhas; talvez um dia lhe fale do nome pelo qual gostaria de ter chamado os meus filhos. Mas o homem parece ser demasiado ocupado. Trata-me como uma criança e insiste em explicar-me a razão de o meu corpo se recusar a permanecer por cá. Já tentei dissuadi-lo explicando-lhe a vacuidade do seu esforço. É a saudade que me atormenta. A vontade de me corrigir no passado. Os meus filhos jamais regressarão a um tempo que nunca foi seu. Quando o fizerem será para encerrarem as portas de um passado desconhecido. Talvez encontrem um primo distante que lhe fale bem de mim, por ter escutado do seu pai que já morreu e me conhecia. Talvez não cheguem a encontrar primo algum.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Morada Perdida

Talvez a vida não chegue para o tempo que quero para ti. Foram muitas as cartas em que me imaginei a escrever-te, sem nunca o ter feito. Por não ter a tua morada, a tua cumplicidade… O que realmente me aborrecia, não era não saber de ti. Era não ter um destinatário. Uma espécie de musa que me fizesse regressar ao que aspirava ser. A minha Dinamene…No princípio tudo parecia fácil, a minha mulher, uma casa, os filhos e um país para descobrir. Mas as saudades enganam. Quando pensava que te tinha esquecido, tu regressavas sem aviso. Como se tivesses acabado de te ausentar. Ficava ansioso. Esperava que entrasses a qualquer momento na minha casa de Luanda. Ver-te regressar à minha vida, como o fizeste em Goa, sem te anunciares, a espantares-me com a tua beleza naquele hotel junto ao rio.
A possibilidade de te voltar a encontrar é nula. A Índia é demasiado grande para uma segunda coincidência. Há milhares de pessoas e nós não temos vontade. Em miúdo escutava histórias de faquires. Ouvia que quando pensavam com muita força, a sua cama de pregos levitava e voavam para junto de quem queriam. Quando cresci, desiludi-me. Pensar num reencontro é tão absurdo como esperar que me reconhecesses. Não me refiro ás feições, que estão velhas e me aborrecem. Falo do meu espírito que deixou de te desejar. Pelo menos é nisso que trabalho todos os dias para me convencer. Ainda assim, gostava de ser mais novo. Não por viver mais, apenas um desejo estúpido de emendar o passado. Consolo-me com este vício terrível de me imaginar a escrever-te. A ver-te ler as palavras que já não sinto. Tento afastar estes pensamentos que me parasitam o bem-estar. Outras vezes tento recordar-me do teu corpo e a memória atraiçoa-me. Faltam-me as expressões do teu rosto. Se te reencontrar vais estar velha e gorda. Nesse dia vou compreender que não foi para ti que sonhei escrever. Um tormento que não chega nem me abandona.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Gavetas de Metal


O meu pai tinha o estranho hábito de guardar uma cópia de cada carta enviada. O tempo parecia-lhe chegar para tudo. Depois recebia a resposta das cartas enviadas e colocava-as em gavetas de metal estreitas, segmentadas por fichas verticais. Em cada ficha havia um registo das cartas que aguardavam resposta e dos assuntos por elas tratados. A cada destinatário correspondia uma ficha, à excepção do núcleo familiar onde quase todos tinham direito a uma gaveta. Havia um segundo ficheiro destinado a todos os artigos publicados no jornal, onde aparecia uma entrada com o estranho nome de “Pessoal”.


Depois da sua morte os ficheiros mantiveram-se intocáveis, não por deferência mas por falta de interesse dos que lá moravam. Regressei a Goa passados cinco anos da sua morte. Não fui mais cedo por falta de coragem para regressar a um lugar de onde me ausentara por mais de vinte anos. Os cinco anos de abandono da minha herança caíram bem ao resto da família. Viram em mim um filho que soube guardar o luto e não estava à espera da morte do pai para regressar. Aproveitaram simultaneamente os anos da minha ausência e a incapacidade do meu pai para roubarem tudo o que puderam.



Fiz uma aterragem difícil no aeroporto de Dabolim, onde o trem tocou por três vezes no chão tendo-me feito acreditar que o destino me impedia de regressar. Fiz a viagem até Pangim mergulhado numa indiferença que me assustou. Talvez tenha sido pelo caminho que deixara de reconhecer. Pangim estava mudada, mergulhada num tráfego frenético e inundada de caras que nada me diziam. A maioria dos goeses, tal como eu, tinham abandonado o território. Em contrapartida as ruas transbordavam de karnatakas, keralas e marastras que se instalaram em Goa. Alguns dos nomes das lojas apareciam escritos em hindi e mais surpreendentemente em hurdu. A Avenida Afonso de Albuquerque que atravessava Pangim em direcção à nossa casa, chamava-se agora Mahatma Ghandi Av.


O taxista cobrou-me cinquenta rupias e após os meus protestos fechou a conversa a sorrir: Sir, you are a foreigner, you don’t know the prices! Tentei falar com ele em concani, mas nada resultou. No fundo tinha razão. No meu desterro tinha-me considerado goês, mas agora nada me reconhecia. A família esperava-me no alpendre. As minha irmãs e as filhas da casa. Acompanharam-me ao quarto que era do meu pai e fizeram-me descansar na sua cama.


A Rosu estava velha. Sentou-se na borda da cama, como fazia no meu tempo de criança.



- Passou os últimos dois anos nessa cama. Estava demente e pouco se compreendia do que dizia. Ás vezes, de noite, gritava o seu nome e ninguém conseguia dormir. Também senti saudades, mas nunca tive coragem de berrar o seu nome.



Depois saiu e eu afundei-me na cama a olhar os pregos vazios na parede onde outrora estavam travessas Ming. No dia seguinte, pela manhã, iniciei o meu trabalho, mas fui interrompido por uma série de visitas inesperadas que souberam do meu regresso. Recebi-os com indiferença. Acreditava não ter deixado nenhum amigo. Talvez tenham feito um favor em me expulsar… Quando reencontrei o sossego refugiei-me no escritório que era circundado por janelas e aquecia de tarde. O calor impedia-me de me concentrar na análise dos terrenos que me calharam em herança e que agora estavam ocupados. Os armários de arquivo estavam cobertos de pó e depois de algum esforço para encontrar a chave decidi-me a abri-los. Espantei-me por o meu pai ter mantido uma gaveta com o meu nome. Estávamos de relações cortadas há mais de vinte anos e ainda assim a minha gaveta permanecia ali. Ao abri-la reconheci a primeira e única carta que lhe havia escrito de Angola, na minha primeira comissão. Depois encontrei todas as que tinham chegado de Puna e desfiz-me em lágrimas. A minha vida empoeirada num ficheiro quase vazio. Ao ver as cartas percebi o quanto tinha mudado. Os que amava e a forma como o fazia tornaram-se diferentes de mim. O que escrevia com a minha letra já não era eu. Reparei que algumas das cartas estavam corrigidas a lápis de forma a emendar o meu português. Considera-se infinitamente mais perfeito que eu e talvez tenha sido por isso que me decidi a partir. Voltei a ter raiva num momento em que o senti vivo ao meu lado. Por fim, encontrei duas cartas com o meu nome e em duplicado. Revelava-se arrependido e esperava o meu regresso. Nunca chegaram a ser enviadas.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Jai Hind

Esforcei-me por aprender uma língua estranha. Fui rápido na forma como abracei a tua língua. A língua metafórica, claro. A real demorou mais tempo. Acariciou-me numa conversa igual ás outras. Talvez tenha sido um pretexto para me calares. Era quente como a língua que falavas. Talvez a conversa tenha sido um pretexto para um beijo apetecido. O hindi embalava-me. Era um dialecto diferente. Riamos quando imaginávamos as poltronas inglesas no seu leito:

-Oh Sweetheart… E o Ohhh prolongava-se num acento de Oxford que nos fazia rir em hindi. A tua língua tinha força, mas conseguia ser bonita. Mesmo quando marchávamos numa rua improvável e pobre, sentia a evocação de uma sentido poético. Era bela demais para ser gritada em slogans, ainda que ao teu lado. Via os teus olhos de ódio contra todos os que duvidavam da tua Índia.

-Jai Hind

E eu também gritava contigo nas ruas de Puna. Aproveitei a chegada da polícia para te abraçar. Como se precisasses da protecção de um meio adolescente…Mas eu era alto e a tua face colava-se-me ao peito. Nesse dia os longos bambus da polícia resolveram ignorar-nos -Jai Hindi - gritava ainda mais alto, num acento estranho à multidão. Contava provocá-los pelo pretexto de te proteger.

Nesse tempo desconhecia a fúria dos bambus. A forma como viriam a castigar o meu copo. Não era nem bravo nem tíbio, era um ignorante que gostava de gritar ao teu lado. Prezava o teu rosto no meu peito. Gostava da tua língua e de a sentir como nossa. Mesmo quando gritávamos o que nunca acreditei.