A procissão seguia entre cânticos. Já tinha avistado várias vezes o corpo incorrupto do santo dos santos. Era o corpo por demais visitado. Parava a olhar o féretro de prata e desejava que me poupassem daquele sofrimento. Ao corpo faltava um pedaço da coxa, um braço e vários bocados de carne amputados por fiéis fervorosos. Temia a morte como todos, mas pior era ver as minhas entranhas disseminadas pelo mundo. O meu tio falara-me com especial afeição de um pedaço de intestino levado por Francisco Mastrilli
para as Filipinas. Um pedaço de S. Francisco Xavier adorado por todos. Tudo me arrepiava. Ao intestino davam maior importância. Eram as primeiras partes a apodrecer. Mas aquelas entranhas desafiavam a razão. Recusavam-se a perecer. Outros relatos causavam-me pior arrepio. As mulheres que tinham arrancado com a própria boca tiras de carne de um corpo morto há dezenas de anos. Pedaços de um santo que lambia as chagas dos leprosos ainda em Itália. Eu estava ali, como todos, Hindus e Cristãos unidos por uma devoção àquele corpo místico. Uma devoção necrófila. Procuravam o êxtase que o santo predilecto havia sentido.
A litania parecia interminável. Afastei-me para um pequeno passeio. O meu tio acompanhou-me pelas ruínas da cidade. Depois de passar o convento de Stª Catarina seguimos pelas ruas de outrora engolidas pela selva. Falei-lhe do meu desprezo pelos Holandeses e de como os Ingleses nos haviam traído. O despovoamento da cidade simbolizava o esplendor de tempos difíceis de imaginar. Esperava que o meu tio se sentisse impressionado com o que tinha aprendido no programa oficial de liceu. Irritou-se. Mandou-me calar. Regressámos em silêncio e quando voltámos a avistar a multidão interrompeu a marcha. Agarrou-me pelo pescoço junto à nuca.Fez-me olhar em frente.
-Aqueles são a verdadeira causa das ruínas que viste. Uma multidão de mestiços. Aqui somos todos descendentes de soldados corruptos cruzados com as piores castas do Concão.
Conheci desde sempre a história da família. Ainda hoje sinto um estranho orgulho de não ter sangue branco. De não sermos descendentes. Por vezes sentia que a minha família se transformava numa desordem difícil de entender. Crenças e revoltas ininteligíveis.
Regressámos em silêncio. Só voltaria àquele túmulo para rezar 33 anos depois. No dia 16 de Dezembro 1961. A cidade voltou a partir para pedir ao santo mais um milagre. O Santo resolveu nada fazer. Mesmo morto continuou a sua saga de milagres. A mostrar a mesma sensatez que quando percorria as ruas da cidade apelando à conversão. Apenas o culpo por ter escrito a D. João III a apelar à instauração da Inquisição em Goa. Tudo o resto lhe é desculpável. Afinal o que poderia ter feito?

A litania parecia interminável. Afastei-me para um pequeno passeio. O meu tio acompanhou-me pelas ruínas da cidade. Depois de passar o convento de Stª Catarina seguimos pelas ruas de outrora engolidas pela selva. Falei-lhe do meu desprezo pelos Holandeses e de como os Ingleses nos haviam traído. O despovoamento da cidade simbolizava o esplendor de tempos difíceis de imaginar. Esperava que o meu tio se sentisse impressionado com o que tinha aprendido no programa oficial de liceu. Irritou-se. Mandou-me calar. Regressámos em silêncio e quando voltámos a avistar a multidão interrompeu a marcha. Agarrou-me pelo pescoço junto à nuca.Fez-me olhar em frente.
-Aqueles são a verdadeira causa das ruínas que viste. Uma multidão de mestiços. Aqui somos todos descendentes de soldados corruptos cruzados com as piores castas do Concão.
Conheci desde sempre a história da família. Ainda hoje sinto um estranho orgulho de não ter sangue branco. De não sermos descendentes. Por vezes sentia que a minha família se transformava numa desordem difícil de entender. Crenças e revoltas ininteligíveis.
Regressámos em silêncio. Só voltaria àquele túmulo para rezar 33 anos depois. No dia 16 de Dezembro 1961. A cidade voltou a partir para pedir ao santo mais um milagre. O Santo resolveu nada fazer. Mesmo morto continuou a sua saga de milagres. A mostrar a mesma sensatez que quando percorria as ruas da cidade apelando à conversão. Apenas o culpo por ter escrito a D. João III a apelar à instauração da Inquisição em Goa. Tudo o resto lhe é desculpável. Afinal o que poderia ter feito?
Sem comentários:
Enviar um comentário