sexta-feira, 18 de julho de 2008

Locomotiva a vapor


Regresso a casa devagar. Guardo a tua imagem como um breve contacto entre dois mundos que nunca se deveriam ter cruzado. A tua face penetra-me. Perturba-me ao ritmo da trepidação da locomotiva. Tento encontrar argumentos para te culpar a ti, aos ingleses, aos nacionalistas, ao teu marido…desenvolvi-lhe um ódio visceral, notaste? Como podes não sentir nojo de dividir a vida dessa maneira? Quando entrei na tua sala vi uma fotografia a preto e branco. Estavas com toda a tua beleza condensada prestes a eclodir. Os anos de casamento amadureceram-te. Estás mais bela. Depois um enorme contraste, uma dor lacerante, aquela presença desagradável. Um horror. Detesto vê-lo assim a partilhar a tua felicidade, a sorrir para a eternidade. O diafragma dessa máquina diabólica deveria ter-se fechado só contigo, diáfana a receber as sombras do entardecer; um contraste perfeito. É assim que te vou recordar nesse instante, sem nunca lá ter estado, nesse instante que não chegou a acontecer.
Volto agrónomo e apaixonado. O meu pai fez contactos para um emprego e um casamento. Aguardam-me várias propostas. Não sinto vontade de iniciar trabalho algum e muito menos arrumar a minha vida. Ouvi rumores de uma rapariga de Velim de boas famílias, trará consigo um bom dote. Parece que abriu uma vaga de agrimensor . Os portugueses finalmente se interessam pela orografia do nosso estado. Também os odeio tal como a mim. Tentarei iludir o meu destino, escapar à censura de meu pai. Mas o ódio entorpece-me o discernimento, turva-me o raciocínio como a certeza de uma bebedeira.

Elegi-te na multidão para seres o objecto, o reflexo de um ser que se ocultava em mim. Este é o meu anátema, o meu abismo sentimental.

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