terça-feira, 22 de julho de 2008

Cadeira de Vime

O meu filho mudou. Não digo que já não seja meu filho, mas custa-me reconhecer o homem que vi partir. Esperei na estação, no cais mais próximo da saída destinado aos passageiros da primeira classe, mas ele não apareceu. Todos os anos vinha pela altura das férias passar um temporada a casa, ia para o último ano do curso e aqueles dias eram para mim os melhores do ano. Depois reconheci um vulto ao longe, todo vestido de algodão branco, com um poreem, vindo do cais da segunda classe. A mesada era sobejamente suficiente, não compreendia, e havia uma inquietude no olhar, um orgulho insano estampado no rosto. Herdara os meus olhos verdes, a minha altivez no andar, sempre o ensinei a caminhar na rua com as costas direitas, - Pensa que és uma pessoa realmente importante – Mas ele sempre se sentira realmente importante não era preciso dizê-lo. Mas agora era eu quem estava de ombros caídos. Não me deu explicações. Começou a falar da União Indiana, da necessidade de se abolir as castas, de transformar a Índia, de os indianos vestirem tecidos nacionais. Disse-me que a saída dos Portugueses era uma inevitabilidade. Mandei-o mudar de assunto, mas ele insistia em falar dos progressos económicos, de uma nação que desabrochava para a modernidade. Pelo caminho continuei a ser lapidado por uma doutrina que não era nova, mas que não esperava ouvi-la do meu próprio filho, não era para isto que o andava a sustentar em Puna.
Ao chegar a casa sentou-se com as pernas cruzadas em cima do tampo de vime na velha cadeira da sala, posição que manteve em todos os convívios daquele ano. Assumia ares de asceta Hindu. Olhar distante. O tampo acabou por se romper e os empalhadores custavam uma fortuna. Consolou-me dizendo que aquele estilo nada tinha de Marastra, tratando-se de mais um luxo ocidental, uma herança de um colonialismo barroco que já se despedira à muito do seu esplendor. Agora o futuro pertencia a nós indianos. Será que me estaria a incluir nessa enorme família?
Afastei-me da sala por temer os infindáveis discursos que me tinham torturado quando regressava da estação. Sentia uma falta de autoridade e todas as tentativas de restituir a minha posição na casa afastavam-me do meu filho.
Numa manhã enquanto inspeccionava o avanço dos trabalhos nas minhas propriedades reparei que os manducares já não se levantavam à minha passagem, hábito que sempre insisti que mantivessem, não por capricho estético, mas por necessidade de conservar o equilíbrio natural das coisas. Os manducares viviam nas nossas terras. Trabalhavam e retiravam da terra o seu sustento. Havia certamente abusos tal como no Alentejo com os rendeiros. Eles eram os primeiros habitantes de Goa. Falavam um concani puro, mais correcto que o dos católicos, sem estrangeirismos.
No dia seguinte pedi ao capataz para se apresentar no alpendre da nossa casa. Descobri que o meu filho tinha organizado diversas palestras, junto dos trabalhadores, onde os instruíra para a Índia Moderna.
O capataz vira-se proibido de praticar qualquer resquício de feudalismo, palavra que não entendeu e aproveitava a oportunidade para me pedir explicações sobre o tipo de conduta a adoptar no futuro.
As férias chegavam ao fim e pelo menos por um ano conseguiria adiar o meu pesadelo. Demorei algum tempo para resgatar a normalidade, mas por fim, consegui reorganizar a estrutura da casa. Entre mim e o meu filho havia algo que estava irremediavelmente perdido.

Fui despedir-me do meu filho à estação e ao regressar aliviado a casa deparei-me com uma inscrição na parede do estábulo contíguo à casa: “A terra é de quem a rega com o suor do seu rosto”. Era a letra do meu filho.

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