quinta-feira, 24 de julho de 2008

Sarapatel

Ficavas sentado no topo da mesa. Era-nos proibido falar durante a refeição. Ao mínimo barulho olhavas com ar severo e franzias o sobrolho. Ali ficavas toda a refeição na tua majestade de velho patriarca sentado à cabeceira em silêncio. Eu sentava-me à tua esquerda e a mãe à tua direita. As minhas irmãs nunca aceitaram a sua posição subalterna na mesa, a tua preferência por mim irritava-as. Acrescentavas-me sempre alguma injustiça no trato, um mimo que fazia crescer a inveja entre as minhas irmãs. Depois fechavas laconicamente a conversa:
- Afinal é o nosso morgado.
Iniciavas um esboço de um monólogo de frases curtas, incipientes, seria para conservares a distância da autoridade? Talvez fosse por nos considerares seres inferiores. Nunca nos achaste dignos de ti.
- Não seja indecente. Aperte o botão.
Mas havia tanto que gostaria que tivesses partilhado comigo, nunca conheci as tuas opiniões sobre nada. Por vezes lia um dos teus artigos no Heraldo e descobria uma sensibilidade enorme, uma pessoa empenhada no bem comum. Recordo-me de um desses artigos em que falavas do papel da música na formação das crianças ou o outro sobre o poder da oração e da fé. Apanhava-te sozinho e confrontava-te. Tentava encetar um diálogo enquanto segurava o jornal com a tua foto. Nunca me ensinaste nenhum instrumento, no entanto ouvi comentários sobre a forma como fazias o violino chorar. Deveriam referir-se a um passado longínquo. A uma face oculta que talvez partilhasses com os da tua espécie.
Não havia nada pior que as refeições. A sala era composta por janelas de madre pérola incrustadas em pequenas ripas de madeira. A luz atravessava as formações calcárias conferindo uma atmosfera inquietantemente calma. A criada interrompia a paz daquele sepulcro sussurrando pequenas perguntas em concani.
Nesse Domingo almoçamos todos juntos. Não. Obrigaste o meu filho a comer na cozinha. Irritavas-te com o desassossego do teu próprio neto. Também nunca gostaste da Florinda. Disseste no dia do nosso casamento que era naturalmente buçal. Foste tu um dos inventores do meu casamento, recordas-te? Passei esse dia como um actor à espera que o pano caísse. Fui eu que disse sim, mas não era eu que lá estava, eras tu. Nunca te odiei por isso. Ela faz-me feliz. Nesse dia tomaste uma decisão ainda mais polémica. Terminaste placidamente a sopa e enquanto a criada recolhia os pratos falaste. Poderias ter feito uma pequena introdução, uma breve explicação, mas não era o teu género.
- A partir de hoje passa-se a falar concani nesta casa. Estão proibidos de falar português à mesa.
Nunca reparaste que mais ninguém falava à mesa além de ti? E quando o fazias que importava a língua se o diálogo era inexistente?
Compreendeste a mudança. Preferiste antecipar o inevitável em vez de esperar que o destino te batesse à porta. Apoiei a tua decisão. Nunca te deste ao incómodo de saber o que pensava sobre o assunto.

A Rosu chegou com uma travessa de arroz branco e sarapatel. Não notou diferença alguma.



2 comentários:

  1. A Rosu é aquela que aparenta nunca notar diferença alguma. Mas é a única que antecipa o futuro. Os olhos dela são preciosos. Há que saber o que ela pensa, só ela é imparcial.

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  2. A madalena tem razão. Também me sinto algo confuco com a história. Era necessário alguém intemporal para fazer a ligação. Deve ser a Rosu.
    Xavier

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